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Boa leitura a todos!
Filme: Linha de Passe, por Paulo Câncio
O filme retrata a vida de uma família que vive sob o sistema matriarcal. A mãe, Cleusa, mesmo grávida do quinto filho, é uma trabalhadora árdua, pau para toda obra, faz o serviço que aparecer, sem carteira assinada, e se empenha bastante. É uma lutadora, com a carga de prover quatro filhos homens sem a ajuda de nenhum de seus ex-companheiros. Cleusa se vê na eminência de ser dispensada pela atual patroa, pois, aos olhos daquela a quem ela servia com o máximo de zelo, a gravidez era um inconveniente. Na relação com os filhos é uma mulher de pulso firme, mas também amorosa. Vale destacar quando ela diz, a plenos pulmões: “Eu sou mãe e pai de vocês!” Não há reconhecimento nem gratidão filial e nenhum dos filhos assume o papel de homem da casa. Tampouco existe união entre eles; passam alguns momentos juntos, como em um jogo de futebol no quintal da casa, mas cada um enfrenta as frustrações da vida oriundas, principalmente, da pobreza, por sua própria conta.
Denis frequenta uma igreja. O pastor fala sobre o tempo perdido com coisas materiais, citando o exemplo de pessoas que passam meses pagando as prestações de um sofá. Segundo ele, isso afasta os fiéis de Jesus. Há um momento em que, em particular com Denis, fala que Jesus não é bonzinho, nunca foi e nunca será; procura passar a mensagem de que quem aceita Jesus é também aceito por Ele. Mais adiante, na igreja, diferencia necessidade (vontade do homem) de fé (vontade de Deus), declarando que se os anseios humanos não são atendidos é porque não se atingiu 100% de fé. A experiência religiosa não traz a Denis esperança de uma vida melhor, nem paz interior. Ele fica confuso. Orações e fé não trazem graça como retorno nem para ele nem para outros fiéis, inclusive para os paraplégicos que não são curados. Em um batismo de novos seguidores, Denis parece cumprir um protocolo, não tem nenhum entusiasmo.
Dinho é preguiçoso, bon-vivant e sem ética. Usa a malandragem para conseguir o que deseja. Anda de moto para todo canto, fazendo alguns serviços aleatórios. Tem uma namorada. Só é explorado no filme o lado carnal do relacionamento. Não contribui com as despesas da casa. No seu círculo social, emerge a frase: “Desde que o homem é homem engana o outro”. É o personagem menos complexo, um tipo comum que dribla as dificuldades financeiras através da malandragem.
Reginaldo, o caçula, ainda criança, que curte desenho animado, é um espírito livre com a inocência ainda preservada. Anda na rua em horários em que era esperado que estivesse em casa, deixando a mãe cheia de preocupação e irritada; busca fora de casa o preenchimento do vazio oriundo de uma estrutura familiar que não atende às suas necessidades emocionais, mas é também uma estratégia de fazer-se notar através de sua ausência. Aparece com dinheiro no bolso sem explicação de onde o obteve. Dá dinheiro a Dinho, talvez em uma tentativa de chamar atenção para uma possível referência masculina mais velha, coisa que também faz provocando os irmãos. Arruma briga na escola. Sua maior diversão é andar de ônibus. Puxa conversa com um motorista que, com o ônibus parado, o ensina a passar as marchas. O modo como os dois interagem poderia sugerir a um observador uma relação entre pai e filho, apesar de estarem se falando pela primeira vez. A despeito de seus problemas psicológicos, Reginaldo é alegre, espontâneo e encantador.
Dario sonha em ser jogador de futebol. São muitas as dificuldades. Nos testes para entrar em times, ouve dizer que há milhões com o mesmo sonho e que poucos são aproveitados. Enfrenta filas quilométricas para se inscrever. Em um dos testes, o técnico reconhece que ele joga bem, mas seu aspecto físico magro o desqualifica. Em outro, é recusado por levar um R.G. antigo com foto de criança. No aniversário de 18 anos, sente as esperanças se desvanecendo e recebe como estímulo a frase: “Garrincha entrou no botafogo aos 19 anos”. Ele sonda outras possibilidades de trabalho, mas estas exigem uma qualificação que ele não possui. Ser jogador de futebol é uma vocação, mas é também a única possibilidade de tirar a ele próprio e a sua família da escassez financeira. Nas peneiras de futuros jogadores é jogada uma partida com os candidatos formando dois times: aquele que está no mesmo time é um concorrente à vaga no time real; jogador que não incorpora a ideia de união do time com objetivo comum de vencer e que busca destaque perde totalmente a chance de ser selecionado. Dario persiste. É selecionado. Passa uma fase temporária sem contrato, sem ser um jogador de verdade. Sua competência em campo cresce ao ponto de ele passar a ser referido como craque. Ele é o único filho que manifesta a característica de Cleusa de encarar os problemas da vida indo à luta, mas recorre à mãe quando a dificuldade aperta. Não tem a inocência de um Reginaldo, nem tenta contornar as dificuldades através da malandragem como Dinho, ou de uma ajuda do céu como Denis. É determinado, persistente, mas também triste, e sujeito a se abater diante de um sonho que parece fugir. Surge uma oportunidade, mas existe um condição: molhar a mão dos responsáveis para fazer daquela possibilidade uma realidade – é muito dinheiro dentro de sua condição financeira. Será ele capaz de superar mais esse obstáculo?
Linha de Passe é um filme de 2008 dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas, com roteiro de ambos e de Bráulio Mantovani e George Moura.
A trama mostra a história de quatro irmãos da Cidade Líder, periferia de São Paulo que, com a ausência do pai, precisam lutar por seus sonhos. Um deles, Dario (Vinícius de Oliveira), vê em seu talento como jogador de futebol a esperança de uma vida melhor. O título é uma alusão ao futebol, que está no centro das atenções, Dario aspira carreira como jogador e são todos torcedores fanáticos do Sport Club Corinthians Paulista. Se interessou? Saiba mais sobre o filme (WikipédiA).
Resenha do livro: A pátria de Chuteiras, de Nélson Rodrigues, por Marcelo Elo Almeida
A Pátria de Chuteiras, de 1994, é uma compilação de crônicas futebolísticas escritas para diversos jornais e revistas cariocas entre 1958 e 1977, ou seja, durante o período áureo do futebol brasileiro, quando a seleção brasileira estabeleceu o que viria a ser o padrão de excelência do esporte mais difundido no mundo.
Jornalista de formação e teatrólogo por necessidade, Nelson Rodrigues imprime nas suas crônicas esportivas o mesmo tom hiperbólico e dramático de suas peças, mas com viés diferente do contido nos textos para o teatro. Ufanista e exagerado, Nelson via no futebol a redenção da questão brasileira mais ampla. Nele, temos motivos de nos orgulharmos, pois elevamos ao nível da arte o que antes era simples esporte.
O futebol é um espaço privilegiado para um aprofundamento da compreensão do Brasil, mas sempre foi relegado a segundo plano pela academia. Inúmeros recortes e ângulos podem ser explorados e uma determinada visão a respeito dele pode ser discutida a partir das crônicas de Nelson Rodrigues: a autoimagem do brasileiro e nossa concepção de país. A bem da verdade, o brasileiro criou um novo esporte, o futebol-arte, pois o outro, o futebol-bretão, é algo violento, pouco imaginativo, duro e cru, sem o balé e o gingado brasileiro que não apenas dão beleza e leveza ao corpo, mas que é também eficiente e vencedor, uma nova forma de se afirmar perante o mundo.
Quanto ao homem brasileiro, Nelson cravava em 1962: “os nossos craques estão ganhando no Chile com as qualidades da coragem, inteligência, imaginação, entusiasmo, gênio do homem brasileiro”, “acredito no bi, porque, repito, acredito no homem genial do Brasil” e “Amigos, vamos reconhecer com sóbria e exata autocrítica: – não há, presentemente, no mundo, uma figura humana tão complexa, tão rica, tão potencializada como o brasileiro. Eis o óbvio que nem todos enxergam: o maior homem da época é o do Brasil”. Com pensamentos como esses, ele atacava o nosso complexo de vira-lata e autoindulgência, buscando uma nova autoimagem. Sendo alguém tão conhecido, falando sobre algo popular pelo veículo mais popular à época (o jornal), Nelson ajuda a criar uma nova percepção de brasilidade.
Por outro lado, Nelson Rodrigues relega ao esquecimento a crítica social mais ampla: o futebol insere-se, junto com a música, no contexto das poucas chances de ascensão social disponíveis à população mais pobre. O esporte faz parte da estrutura hierárquica e racista brasileira, excludente e antidemocrática, sem acesso aos melhores postos econômicos, políticos e sociais. O futebol é “A Oportunidade” de ascensão para alguns e de sobrevivência para muitos. É o local por excelência dos espaços moles de convivência, onde o negro e o pobre talentosos são aceitos e benquistos na medida em que trazem alegria e divertimento para as elites, merecendo até dinheiro e prestígio. Já nos espaços duros, ou seja, o das relações conjugais, patrimoniais e trabalhistas, simplesmente não são bem-vindos. Sirva a minha taça, mas não beba do meu vinho.
Ao ser ufanista e pouco crítico quanto aos aspectos sociais do futebol, Nelson acaba ajudando involuntariamente na captura do esporte pelo discurso mais reacionário de amor à pátria e de “Brasil, ame-o ou deixe-o” que foi amplamente utilizado pelos militares, tendo inclusive influenciado na derrubada e escalação de técnico e jogadores da seleção de 70, como é amplamente sabido. “O ser humano pensa demais, e é pena, pois a vida é, justamente, uma luta corporal contra o tempo. Repito: o ser humano vive pouco porque pensa muito” ou “Viu-se então que o raciocínio é uma draga, uma carroça diante da agilidade vertiginosa do instinto”. Isso para a manipulação das massas é um instrumento e tanto.
Há de se ter o entendimento de que na época em que as crônicas foram escritas a realidade do futebol era bem diferente. Os clubes não eram empresas. Jogadores fidelizavam-se por anos em um mesmo time, às vezes, pela carreira inteira. Não havia cifras milionárias por um passe. A falta de criticidade de Nelson aos olhos do leitor de hoje deve-se ao fato de ser o retrato desbotado de uma época. Raras são as vezes em que discussões mais amplas aparecem nesse campo durante as décadas das crônicas. As denúncias de racismo, como no caso do goleiro Aranha, ou o discurso do negro Roger Machado, técnico e ex-jogador, ou a homofobia e o machismo, são bons exemplos de temas para politizar algo tão caro ao brasileiro, mesmo que não interesse ao capital.
A pátria de chuteiras por
Autor: Nelson Rodrigues
“Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante.” Nelson Rodrigues marcou um lugar indiscutível, revolucionário no teatro. No entanto, o Nelson cronista, o comentarista de futebol, não é menos importante. Nelson Rodrigues foi o escritor brasileiro que “leu”, “releu” nosso país pelo campo, pela bola,
pelos craques. Ele viu e compreendeu, antes de todos, a grandiosidade da nossa pátria. Defendeu a nação com uma paixão pura. “Anunciou”, “promoveu”, “profetizou” a força do Brasil. Saiba mais…
Uma Roda de Pensares: O Brasil e a Impotência Olímpica, por Rita Perez Germano, Pedro Germano da Cunha e Murilo Dias dos Santos
Quando o WhatsApp sinalizou uma mensagem, eu não imaginava que seria uma mensagem da Daiane. Daiane, colega de aula de tanto tempo – do tempo em que a Shakira cantava em espanhol – amiga e companheira de escritas. Além das palavras afetivas, um convite bonito: um texto para este informativo literário.
Como brinco com as palavras, colocando-as lado a lado na tentativa de torná-las suave aos olhos de quem as lê, fiquei receosa em não atender às expectativas de uma temática tão importante para a nossa sociedade: como o Brasil quer se tornar uma potência olímpica se os profissionais de Educação Física não são valorizados?
E, então, pedi companhia na escrita desse texto; meu filho Pedro – filho, neto, sobrinho e afilhado de professores que respiram educação em suas existências – graduado em Educação Física e com um olhar cirúrgico, justo e muito humano para a sociedade em que vivemos, mesmo sabendo que tem um lugar privilegiado nela; e meu aluno Murilo, estudante do nono ano de uma escola pública, curioso, investigativo e desbravador de um mundo que é todo dele, a cada vez em que se afeta, se indigna e se emociona com as pessoas e os fatos que fazem parte da sua vida. Agora, numa roda afetiva e potente, de mãos dadas a esses dois guris, me atrevo, após diálogos e escritas espontâneas e despretensiosas, trazer algumas reflexões sobre a temática que versa esta edição.
Pedro, quando começamos a conversar, iniciou a sua fala, dizendo: “a pouca carga horária desfavorece a continuidade do trabalho docente da Educação Física, como ainda, da horizontalidade no tratamento das modalidades, visto que o pouco tempo disponível impede a vivência de todos os pilares da Educação Física: Ginástica, Jogos, Danças, Esportes e Lutas.” E, logo, me encontro nas vivências de Murilo e seus colegas que esperam ansiosos e empolgados pelas duas horas-aula semanais de Educação Física.
Aqui eu me permito refletir como professora de Língua Portuguesa – que tem cinco horas-aulas semanais: “Por que a corporeidade e o movimento, no currículo escolar, no Brasil, não têm a mesma relevância que outros componentes curriculares? Será que isso não vai na contramão da importância desse componente na formação integral dos estudantes? Será que essa carga-horária reduzida não está corroborando com estudantes cada vez mais inativos e com morbidades?” E, Pedro, colabora com indignação e sabedoria, trazendo outras questões como o ciclo vicioso entre a superficialidade como é vista a Educação Física, a desvalorização do docente, a ausência de estrutura e o não reconhecimento do papel transformador da Educação Física, como questões que nos dão pistas sobre o Brasil não estar nem perto de ser uma potência olímpica.
Nesse momento, peço licença aos leitores, e me encho de orgulho como mãe e como professora, por costurar essas ideias tão potentes e sigo nessa escrita bebendo nas ideias do Murilo que traz uma fala pontual: “Acredito que a desvalorização do professor se dê pela desvalorização do esporte. É interessante observar que o esporte em países desenvolvidos é uma forma de alcançar sucesso na vida; nos Estados Unidos, por exemplo, é comum conseguir bolsas através do esporte nas universidades. No Brasil a coisa é diferente”.
E movimentando a nossa roda, Pedro nos traz outro viés: a elitização de algumas modalidades esportivas dificultam a abordagem nas escolas públicas, com materiais caros, como “raquete”, por exemplo, e que exijam acessórios não usuais. Isso também contribui para a mesmice do futebol, uma vez que só precisamos de um espaço aberto e uma bola (ou um item para simulá-la). Aqui, temos outra abordagem: a mesmice do futebol – que não pretende ser um termo pejorativo, mas acaba sendo pela falta de materialidades, e a consequente não amplitude para as demais modalidades esportivas.
Este texto, feito em roda, não pretendeu responder a questão inicial aqui. O convite feito pela Daiane nos trouxe muitos pensares, para além de uma escrita que se moveu livremente pela literatura. E não teve nenhuma pretensão de convencimento, mas, sim, a mais bonita das intencionalidades: de unir três pessoas que se movem pelo mundo com a coragem da reflexão e da indignação em enxergar que a potencialidade olímpica de um país é o resultado de muitos investimentos sociais, financeiros, emocionais, estruturais e não apenas da disposição e quereres dos nossos atletas.
Se queremos ver as medalhas olímpicas crescendo nas tabelas mostradas pelos meios de comunicação? Nós três “gritamos” que sim, mas sabemos que essa potencialidade é a culminância de muito investimento que, ainda, não há no Brasil. E continuamos, incitados por essa escrita, como sujeitos reflexivos e nos “movendo enquanto gente” em um movimento bonito para que o nosso esperançar não seja desbotado por falta de uso.
Cooperação e Competição no Esporte, por Karine Souza e Pousas
Apesar de não ser um consenso, podemos afirmar que o esporte do jeito como o entendemos hoje, nasceu na Grécia antiga. Este é um fato interessante para refletirmos sobre este movimento que ainda que não tenha finalidade profissional, possui intenção social. O esporte é uma solução para o desenvolvimento de habilidades corporais, a promoção da saúde mental e o fortalecimento de relações sociais.
Um contraponto de promoção para a saúde integral são aspectos relacionados à pressão excessiva (impactando em desequilíbrio emocional), o surgimento de lesões físicas e também o uso de substâncias proibidas para melhorar o desempenho do esportista (doping). A fuga da harmonia e ideais do esporte também pode se estender aos torcedores, que nessa circunstância, demonstram atitudes animalizadas, hostis e agressivas – destacando que a hostilidade não sintetiza a prática desportiva.
Há quase 3 mil anos, quando surgiram as Olimpíadas, o objetivo maior era o desenvolvimento da corporalidade perfeita e, claro, da humanidade como um todo. Desde aqueles tempos, existia a chamada paz olímpica, que previa uma trégua das guerras e conflitos entre os povos, em uma celebração das duas forças que impulsionam os aspectos positivos do esporte – a cooperação e a competição. Ao contrário do que possa parecer, ambas são complementares, garantindo o desenvolvimento de virtudes para a formação de um cidadão, tais como:
- disciplina;
- saber perder;
- foco;
- confiança no outro;
- autoestima;
- fortalecimento do corpo e da mente.
A competição — que geralmente é associada a fatores negativos — tem sido excluída tanto dos desportos quanto de atividades lúdicas. Instituições de ensino seguem uma tendência de premiar a todos os participantes, evitando assim que ninguém se sinta derrotado. Essa atitude, no entanto, impede o desenvolvimento de qualidades psicoemocionais. Crianças e jovens precisam lidar com a frustração e o com o fracasso. Competir é essencial, pois convida o esportista a superar a si mesmo e ir além. Outra face positiva de uma competição saudável é a capacidade de reconhecer que os outros também podem se sair melhores em algumas ocasiões e que perder e ganhar são situações e não rótulos definitivos.
Apesar de a cooperação se destacar principalmente nos esportes coletivos, onde a equipe precisa estar unida e coesa, também dá para percebê-la em diversas modalidades individuais. Um exemplo é na ginástica olímpica, mas também vemos essa situação presente nas lutas e no atletismo. Cooperar também significa persistir. É evoluir em busca de uma superação de desempenho, seja com a ajuda dos colegas de time, do treinador ou do professor de educação física.
Um atleta se constrói com anos de prática desportiva. Porém, a indústria da informação vende sonhos de resultados imediatos. A inadequação de expectativas entre tempo de dedicação e resultados obtidos é um dos motivos que afastam e crianças e adolescentes dos esportes. Na era da velocidade dos cliques, meses, anos de treino parecem uma eternidade. Nesse sentido, é importante que o esporte também seja validado como um recurso de educar para a vida.
Meritocracia nos Esportes, por Simone M M Lopes
Você já se deu conta de que Daiane dos Santos, Simone Biles e Rebeca Andrade têm mais em comum além de serem ginastas olímpicas estelares? As três são atletas negras tidas como exemplos de superação, uma vez que são oriundas de famílias desprovidas de recursos financeiros que pudessem financiar o seu treinamento. Este fato alimenta uma discussão importante: a meritocracia.
O “poder do mérito” valoriza a ascensão social baseada no desempenho individual. Este termo, cunhado pelo sociólogo inglês Alan Fox em 1956, ganhou a relevância que tem hoje através da obra literária de outro sociólogo, também britânico, Michael Dunlop Young em 1958. “The Rise of Meritocracy” (“A Ascensão da Meritocracia”) é centrada na estratificação social com base na percepção da capacidade e potencialidade intelectual dos indivíduos. Aos “mais capazes” era dada uma educação de qualidade visando o ingresso na universidade, enquanto aos “menos capazes”, uma educação mais básica, que os mantinha num patamar mais baixo. Na obra, o termo meritocracia é usado de forma pejorativa, mostrando que a elite se vale deste conceito para manter as classes mais baixas desprovidas de oportunidades, mas para a indignação de Young, mais tarde o termo foi ressignificado e passou a ser utilizado como critério determinante para o acesso à melhor educação e a empregos bem remunerados. Assim, a sociedade que se pauta por esta interpretação acaba focando somente no resultado, não percebendo que a meritocracia favorece unicamente a excelência de quem pode investir no seu processo de preparação, ampliando assim as desigualdades.
No esporte, a meritocracia produz uma cortina de fumaça sobre o começo da carreira dos atletas de primeiríssima linha que foram descobertos ou que precisaram investir em seus próprios sonhos a duras penas, jogando luz somente sobre seus feitos extraordinários. Não existe uma preocupação com a formação e qualificação dos atletas, independente de posição social ou condição financeira. Somente a partir de uma “prova de qualidade inata”, ou reconhecimento de “um dom natural”, que muitas vezes acontecem por acaso, eles passam a ter a atenção e patrocínio, sendo reconhecidos como bons investimentos.
Para atletas advindos de uma situação financeira desfavorável, suas famílias têm um papel preponderante no seu desenvolvimento, muitas vezes sacrificando-se em função de seus sonhos. Daiane dos Santos, primeira brasileira a conquistar uma medalha de ouro no Mundial de Ginástica Artística nos USA em 2003, foi descoberta aos onze anos por acaso, brincando na pracinha da escola. Uma professora vislumbrou o seu potencial e a convidou para fazer um teste na Associação dos Amigos do Centro Estadual de Treinamento Esportivo. A partir deste momento, seus pais se esforçaram para bancar o desenvolvimento de sua carreira, enfrentando todas as dificuldades em nome do seu sonho.
O começo da vida de Simone Biles também não foi nada fácil. Ela e seus irmãos passaram fome e maus tratos por conta dos vícios da mãe, viveram por três anos em um orfanato até que seu avô materno a adotou, junto com uma das irmãs, aos seis anos de idade. O acaso finalmente lhe sorriu quando uma excursão da escola teve de ser cancelada e o colégio resolveu fazer uma visita a um centro de ginástica artística. Achando tudo muito divertido, ela se pôs a tentar imitar os movimentos e foi convidada a fazer aula de ginástica. Devido ao apoio de seu avô, progrediu rapidamente e tornou-se uma das maiores ginastas olímpicas em várias categorias.
Com Rebeca Andrade não foi diferente. Sua mãe, solteira e com oito filhos, trabalhou como faxineira para bancar o seu treinamento em um projeto social de iniciação ao esporte da prefeitura de Guarulhos. Seu irmão mais velho a acompanhava ao local dos treinos, a duas horas de caminhada de sua casa, até por fim conseguirem comprar uma bicicleta.
Outro empecilho que elas tiveram de superar foi a comparação com atletas brancas e esguias, maioria na ginástica artística. A ideia de um corpo feminino ideal para a realização de movimentos rápidos e complexos guardava em si uma estigmatização do que era adequado ou não para este esporte. Mais uma vez, a determinação em realizar seus sonhos a qualquer custo as impulsionou, sem apoio nem patrocínio, até demonstrarem o seu potencial e sua qualidade, a despeito das ideias preconcebidas a seu respeito.
As dificuldades enfrentadas por Daiane, Simone e Rebeca advêm da ausência de planos governamentais de incentivo e desenvolvimento esportivo que, justificados pela meritocracia, levam a sociedade a crer na falácia de que “quem é bom, já nasce pronto”. E quanto às crianças que, desprovidas de estruturas essenciais ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades, jamais terão a oportunidade de se descobrirem atletas?
O conceito da meritocracia, que pode parecer lógico e calcado na capacidade e no empenho individual para vencer barreiras, na verdade esconde a premissa de que se alguém possui uma capacidade inata, não é necessário se preocupar com a equidade de oportunidades, pois ele vencerá suas dificuldades com o seu próprio esforço. A real superação dos poucos que conseguem transformar o seu potencial no resultado valorizado pela sociedade é assim manipulado e inflado, servindo de cortina de fumaça para a inércia dos sistemas públicos.
A meritocracia aprofunda as desigualdades sociais, uma vez que potenciais equivalentes jamais serão capazes de se desenvolver da mesma forma em circunstâncias díspares. É, portanto, o instrumento perfeito para uma sociedade que não se compromete com a formação de seus indivíduos, abandonando-os à sua própria sorte – ou azar.
Vale também destacar que a crítica original de Young não passou despercebida por Hannah Arendt, filósofa alemã, segundo a qual “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”, e ainda, “a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos”.
Cabe, portanto, o questionamento da educação esportiva baseada na meritocracia, e a responsabilização de toda a sociedade pelo abandono das crianças aos seus próprios destinos.
Receita de Grego, por Daiane Carrasco
O pai da Medicina foi Hipócrates (460 a.C. – 377 a.C.). Não que os antigos gregos não tratassem moléstias antes dele, mas ele foi o primeiro a reunir os sintomas e a diagnosticar as doenças de modo científico. O interessante é que, segundo relatos de filósofos contemporâneos do velho médico, as curas envolviam mais do que ervas e infusões. Hipócrates acreditava que o corpo entrava em um estado de equilíbrio ou desequilíbrio segundo o “humor corporis” e que as doenças eram a manifestação de uma “crise”. Ele prescrevia azeite de oliva para feridas, uma solução de magnésio para males digestivos, repouso, passeios ao ar livre, a prática de esportes para “agradar aos deuses” e, para finalizar, uma ida ao teatro. Seus conselhos refletiam a rotina típica de um cidadão da Grécia Antiga.
O modo de vida dos antigos gregos está longe de ser perfeito. As mulheres tinham pouca autonomia e direitos: nem eram consideradas cidadãs. Os homens livres (únicos cidadãos perante as leis) cultivavam o “ócio criativo”. Os cidadãos não trabalhavam ou trabalhavam muito pouco. O grosso, o batente, recaía sobre os escravos. A despeito das aberrações, há pontos positivos, examinemos…
Praticamente em todos os povoados havia teatros, onde eram encenadas comédias ou tragédias, bem como declamavam poesias (chamadas de ditirambos), geralmente em honra ao deus Dionísio. Também toda a cidade tinha um “ginásio”, que originalmente significa “treinar nu”, porque era hábito despir-se para a prática de esportes (daí a explicação do porquê de as estátuas de atletas estarem sempre nuas).
Tanto os teatros quanto os ginásios eram públicos, pertencentes à administração das “pólis”, cidades-estados. Para os gregos, a arte, o lazer, a filosofia e os esportes eram motivo de orgulho cívico, parte indissociável do cotidiano da sociedade. Não é por acaso que fundaram os pilares da democracia – somente um indivíduo pleno do seu potencial físico e intelectual era capaz de discernir sobre a escolha dos seus governantes (utópico em termos atuais, infelizmente).
Os gregos entendiam que a existência humana é complexa – exige estímulos sensoriais, movimento, pensamento. Saúde é uma visão abrange de inúmeros aspectos. Parece que nos esquecemos disso. Remediamos os males físicos como se fossem dissociados do indivíduo. Valorizamos mais a medicação do que a mudança de hábitos. Insônia? Pílula. Angústia? Pílula. Ansiedade? Pílula. Falta de desejo sexual? Pílula. Sobrepeso? Pílula.
Não estou menosprezando ou julgando aqueles que realmente necessitam de medicamentos para manterem a sanidade mental e a qualidade de vida. Porém, estamos imersos na lei do menor esforço. É mais cômodo recorrer a cápsulas do que criar uma rotina de autocuidado. Também não sou alienada – logicamente o “autocuidado” é diretamente proporcional ao saldo bancário de cada um. Mas é necessário relacionar o percentual absurdo de distúrbios psicossomáticos com o quanto estamos enclausurados e sedentários.
A exposição prolongada às telas exigem habilidades visuais e cognitivas, porém, muito pouco dos nossos músculos. A luz artificial bagunça o nosso ritmo circadiano, ou seja, os hormônios que regulam nossas atividades durante o dia e a noite. Temos comida o tempo todo ao alcance das mãos – passamos comendo boa parte do tempo. O problema é que essa comida não nos fornece nutrientes de qualidade, pelo contrário. A maioria são alimentos ultra processados, com baixo valor nutricional e excesso de calorias. Acumulando mais energia do que o corpo é capaz de gastar, o que nos resta? Engordar! Até aí, ok. Livre arbítrio, corpos reais, certo? Errado. Nunca sofremos tanta pressão estética quanto agora. As redes sociais e as mídias televisivas expõem corpos inatingíveis, o que vem piorando com o advento de campanhas publicitárias com modelos criados a partir de inteligência artificial. Os consultórios psiquiátricos estão lotados de pacientes com transtornos de autoimagem.
Então vamos ao cinema, ao teatro, espairecer, certo? Errado. As baixas bilheterias resultantes dos streamings “on demand” têm levado diversos proprietários de cinemas à falência. Companhias de teatro não excursionam sem patrocínio, cada vez mais raro em um país como o nosso, que encara peças teatrais como “chatas” ou “entretenimento de bacana”. As ofertas de lazer disponíveis também produzem isolamento, diminuindo as conexões entre as pessoas, agravando quadros depressivos. É preciso romper este círculo vicioso.
Salvaremos as gerações futuras se reinventarmos o passado. Volta a fita (expressão pré-histórica). Hipócrates deixou-nos muito mais do que o juramento que é feito na colação de grau nos cursos de Medicina mundo afora. Legou-nos uma prescrição sem contraindicações datada de 2400 anos!
Livros Indicados
Nossos livros recomendados dessa edição trazem uma história de amizade, uma sátira inteligente sobre o Gênesis e um romance autobiográfico. É a oportunidade de conhecer grandes nomes da nossa literatura contemporânea, como Millôr Fernandes e Fernando Sabino. Bora lá!
Sócrates e Casagrande – uma História de Amor – Autores: Walter Casagrande e Gilvan Ribeiro
Dois ídolos, muitas paixões. Sócrates e Casagrande foram parceiros em muito mais do que gols. Os atletas libertários protagonizaram a Democracia Corinthiana, lutaram pelas Diretas Já, envolveram-se com álcool e outras drogas, amaram muitas mulheres e mostraram como ninguém o verdadeiro tamanho de um ídolo. Descubra a intensidade dessa amizade, com histórias de idealismo, loucura, paixão, dor, humor e fé. Saiba mais…
Esta é a Verdadeira História do Paraíso – Autor: Millôr Fernandes
Em 1963, Millôr Fernandes era um importante colunista de O Cruzeiro, na época a revista mais lida do Brasil. Ateu desde menino, satirizava em seus textos as passagens bíblicas e os dogmas religiosos, posição que arrebatou milhares de fãs, mas também incomodou os mais fanáticos, como atesta a história em torno da primeira publicação desta versão do Gênesis. Pressionada por “alguns carolas do interior”, segundo as palavras do autor, a direção da revista afirmou que Esta é a verdadeira história do Paraíso havia sido publicado sem a sua autorização. A resposta de Millôr foi se desligar da revista, e quando a mentira veio a público o autor ganhou amplo apoio de seus leitores e dos artistas da época. Mais de cinquenta anos depois, superada a polêmica, o livro é considerado uma das obras mais importantes do autor, com questionamentos que só poderiam ter saído da mente do nosso humorista mais brilhante. Logo nas primeiras páginas fica evidente por que esta história do paraíso, recontada com descrença e humor, está mais atual do que nunca. Nesta edição, além do fac-símile publicado em O Cruzeiro, alguns dos principais quadrinistas da atualidade deram a sua versão sobre a origem do mundo. Saiba mais…
O Menino no Espelho – Autor: Fernando Sabino
Um mundo mágico de surpresa e deslumbramento, desvendado por Fernando Sabino com maestria. O meninino no espelho é o primeiro romance infantojuvenil do aclamado autor, que foi adaptado para o cinema em 2013 com direção de Guilherme Fiuza Zenha. Um verdadeiro clássico para ser lido, com igual encantamento, por meninos e adultos.
A literatura brasileira ganha um novo personagem. Tom Sawyer, Mogli, Alice, Gulliver, Pinóquio e o Pequeno Príncipe têm um companheiro entre nós: o menino Fernando, que vem a ser o próprio autor, a viver todas as fantasias de sua infância em aventuras mirabolantes. Ensina uma galinha a conversar, aprende a voar com os pássaros, fica invisível, encontra-se com Tarzã e Mandrake, visita o Sítio do Pica-Pau Amarelo. E, no menino que vê refletido no espelho, descobre o melhor de si mesmo, a projeção do ideal de pureza que só uma criança pode alcançar – simbolizada, de maneira luminosa, na libertação dos passarinhos. Saiba mais…
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Corpo Editorial
Designer e Criação
Sérgio Fernandes
Consultor de T.I. & Terapeuta Corporal
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Autor do Livro Zé das Campas
Escritores da Edição nº 09 de 2024 – As Entrelinhas dos Esportes
Rita Perez Germano
Professora, Educadora e Escritora
Instagram: @ritapgermano
Simone M M Lopes
Professora de Física e Coordenadora de Colônia de Férias
Instagram: @simonemmlopes
Lançamento do Livro Infantojuvenil no segundo semestre – A Chave do Enigma.
Paulo Câncio
Escritor & Pianista
Instagram: @paulocanciodesouza
Autor dos Livros Trajetória de Aventureiro
& Momentos da Vida (Direto com Autor)
Pedro Germano da Cunha
Professor de Educação Física
Instagram: @pcunha01
Murilo Dias dos Santos
Estudante
Instagram: @muri.diass