Edição 05 – Folclore – Dezembro 2023

Edição 05 – Folclore – Dezembro 2023

Resenha do livro O Som do Rugido da Onça | O Auto da Compadecida – Filme | O Mito da Mani | O Negrinho do Pastoreio | O Curupira | Emular-se | Bolinhas de Guaraná | Livros Indicados | Literato Dente-de-leão Nº 05 em PDF

Folclore por Sérgio Fernandes

Sentia as batidas do meu coração como um instrumento cadenciado de percussão… tum… tum… tum… Acordando com uma barulheira no acampamento, meio zonzo, lentamente percebia alguma ordem nas palavras mais próximas a mim, sobressaindo da gritaria. Alguns meninos falavam, aos berros, e, embora eu entendesse as sentenças, não era capaz de identificar os interlocutores.

— Um menino apareceu do nada e atacou o grupo de homens que estavam botando fogo na mata!

— Menino! Que menino faria isso?

— Falaram que ele tem cabelos vermelhos e seus pés são virados para trás. Ouvi uns gritos: “Curupira, olha o Curupira!”

— Não acredito, preciso ir ver isso.

— Como assim? Precisamos fugir!

— Não mesmo. O que faço com minha curiosidade?

Saí da minha barraca e vi o caos. Tudo estava uma bagunça, alguns fugiam, outros tentavam pegar suas coisas. Havia muita roupa amarrada umas às outras, as barracas que não abriam, pois seus zíperes tinham sido sabotados. Apertei os olhos e vi um ponto vermelho, parecia um gorro de Papai Noel pulando para lá e para cá, quando ouvimos:

— Solte, Saci, isso é meu!

Quando o Saci soltou o objeto, a pessoa rolou no chão e ele sumiu dando risada, pulando para dentro da mata.

— Deus! Estamos onde? Em um território mágico? – Perguntei, almejando uma resposta que ninguém tinha.

Andamos sem rumo, até atingirmos uma clareira aberta por caçadores. Vimos o Curupira e uma cobra de fogo, a Boitatá. Eu estava amedrontado, mas também curioso. Será que a mula-sem-cabeça, a cuca, o corpo-seco… apareceriam? Algum dos presentes gritou:

— Eu perdi minha corrente de proteção! — Ao que retruquei:

— Invoca o Negrinho do Pastoreio no caminho!

O folclore brasileiro é riquíssimo e divertido. Gerações e gerações vão mantendo tudo isso vivo e entretendo crianças, jovens e adultos. As festas que temos o ano todo, Carnaval, Juninas, Folia de Reis, dentre muitas outras, ou ainda todas as simpatias para boa sorte na virada do ano: comer uvas e romãs, ganhar uma folha de louro e guardar na carteira, vestir branco, pular sete ondas –  são folclore, nossa cultura popular brasileira!

Boa leitura a todos.

Resenha do livro O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk por Marcelo Elo Almeida

O Som do Rugido da Onça é um romance que possui duas trajetórias distantes no tempo, mas que se cruzam por força da ancestralidade que as une. O livro de Micheliny é o resgate de uma história que já ouvimos falar na escola, mas da qual não nos damos conta de sua gravidade: o sequestro de duas crianças indígenas da Amazônia por pesquisadores alemães, Martius e Spix, no início do século XIX. Levadas para Munique, são objeto muito mais de curiosidade do que de estudo ou de “aculturação”. Rebatizadas como Isabella e Johann, têm seus nomes, Iñe-e e Juri, ignorados. Tratados como objeto, são despersonalizadas, desconsideração da humanidade mais básica que cada nome contém.

Duzentos anos depois, Josefa é uma mulher também deslocada de suas raízes, oriunda do Norte, mas vivendo na São Paulo dos barulhos que só ironicamente pode se chamar de floresta. Desenraizada, vagando pela metrópole, ela se indigna com um dos títulos de uma exposição num centro cultural qualquer: “os índios vistos como parte da fauna” –  intitula uma gravura que representa os indígenas sequestrados. A sua ancestralidade é ativada e contatar esse passado torna-se uma obsessão. Ciente de um leilão de gravuras de época, ela vai à Munique e as arremata pessoalmente, num movimento não racional, guiado por uma necessidade atávica que se impõe a ela.

O segundo capítulo do livro é uma advertência. A história a ser apresentada é a história de uma morte, com um silenciamento anterior. Silenciamento de duas crianças indígenas, de uma cultura e de todo um etos. Por isso, a voz que se eleva em seu lugar assusta, ecoa como ameaça, forte e corajosa. É a voz de Tipai uu, a onça, o rugido. Por isso, as palavras usadas soam estranhas, como um eco longínquo que reverbera em nossas mentes. E também por isso, a fabulação presente ao longo da narrativa deixa-nos suspensos no embevecimento da contemplação do belo. Tudo que está ali, eu já conheço, mas não sabia que conhecia.

À surpresa pela sensibilidade e originalidade do tema sobrepõe-se o estranhamento com a linguagem empregada em boa parte do livro. Dos dialetos miranha, juri e nhengatu, as palavras desconhecidas são o que causam menos dificuldade. Compreender o etos que a autora apresenta na narrativa, os mitos indígenas presentes, como o da criação, ou escutar a voz de Tipai uu, a onça, portadora de toda cosmogonia miranha, isso sim é difícil.

O rugido felino é expressão mais elevada da floresta e de um mundo em que humanos, fauna e flora formam um todo, encontram-se em sinergia e harmonia. Ele se torna tão mais potente e amedrontador quanto mais a menina Iñe-e é desnaturalizada. Tipai uu inspira medo e reverência. Sua potência e sua força colocam-na num patamar de rainha da floresta. Portadora de grande vitalidade, desperta nos humanos o sentimento de compartilhamento com aquela força da natureza.

Jaguara, onça, yauaretê, pantera, jaguaretê, tipai uu, pinima. Seus nomes são muitos, sua voz é única. Evocação dos elos mais profundos entre os seres vivos, não importa se peludos, cascudos, alados, quadrúpedes ou bípedes. Atingir um é atingir todos e a voz do mais forte, Tipai uu, não pode se calar ante a violência contra aquelas crianças, seus semelhantes. Ela ruge, amedrontadora, agoniada e indignada, portadora da voz da floresta e da vida que se esvai lentamente. Ela ruge porque sabe que os seus estão sendo violentados. Ela voa, toma emprestado o par de asas de uiuurete e parte, além-atlântico. Inútil, não é capaz de salvá-los. Mas ela posta-se sobre a cabeça da estátua de Diana, deusa branca da caça, e diz: “Eu estou sempre aqui. Não consegues me ver desde aí debaixo? É porque não tens olhos para o invisível, olhos de ver o espírito que permeia vida e morte pela eternidade.”

O livro de Micheliny Verunschk não é só denúncia de morte e de desligamento dos homens de sua natureza mais profunda. O absurdo de sequestrar seres humanos, como se fossem atrações de circo, passou despercebido nas aulas de história, mas o livro de Micheliny nos traz de volta a indignação. Ele é também reafirmação de que espíritos não morrem. Eles podem tornar-se encantados, ir para outras dimensões ou se resguardar no interior das florestas, mas eles são mais do que vida – são existência. Quando quiserem, Iñe-e ou Tipai uu voltarão. Josefa é a prova.

Neste romance embebido de lirismo, Micheliny Verunschk joga luz sobre a história de duas crianças indígenas raptadas no Brasil do século XIX.

Vencedor do Prêmio Jabuti na categoria “Romance Literário”. Em 1817, Spix e Martius desembarcaram no Brasil com a missão de registrar suas impressões sobre o país. Três anos e 10 mil quilômetros depois, os exploradores voltaram a Munique trazendo consigo não apenas um extenso relato da viagem, mas também um menino e uma menina indígenas, que morreriam pouco tempo depois de chegar em solo europeu. Saiba mais…

O Auto da Compadecida – Filme por Jessica Calisto

Filme lançado em 10 de setembro de 2000, baseado na peça teatral “Auto da Compadecida” (1955) de Ariano Suassuna e dirigido por Guel Arraes, contando com duração de 104 minutos e classificação etária livre. Essa obra, que apresenta muito da literatura de cordel, retrata a vida difícil de dois amigos trapaceiros, Chicó e João Grilo, que vivem no sertão da Paraíba e precisam de toda sua criatividade para sobreviver.

A falta de chuva e segurança, até o modo que a religião trata as pessoas de acordo com a classe econômica a que pertencem, são temas retratados na obra. Através de Chicó visualizamos o perfeito “tipo” covarde com a imaginação de uma criança, pois quem acredita que ele foi “pescado” por um pirarucu que o carregou por três dias ou no amigo que morreu e voltou para contar como era no céu? Ao ser indagado sobre o desfecho das histórias ele esquiva-se, dizendo: “Só sei que foi assim”. 

Ariano Suassuna critica o “cristianismo de conveniência” nessa obra.  O padre e o bispo expõem a parte corrupta das religiões, onde a pessoa só vale a ação por meio de uma contrapartida (propina), trazendo a ideia de que quando a pessoa não tem algo a oferecer, ela é descartável. O autor aborda também o cangaço, apresentando um cangaceiro (Severino) que se passa por mendigo para acompanhar a rotina da cidade e é ignorado por todos. Então resolve invadir a cidade e matar qualquer um que atravessar seu caminho. Há, também, a mulher do padeiro (Dora), que adora trair o marido, e o padeiro traído (Eurico) que não se importa com as pessoas, como demonstrado na cena que João Grilo reclama que foi deixado para morrer em uma cama sem ajuda de seu patrão, que era o próprio Eurico, para o qual apenas o dinheiro importava, mesmo que fosse necessária a exploração do próximo.

A trama principal é encadeada a partir da ideia de João Grilo para provar a coragem de Chicó ao seu possível futuro sogro, o coronel Antônio Moraes, e assim conseguir que Chicó se case com Rosinha (e tudo isso para ganhar o dote da moça, um porquinho cheio de dinheiro herdado de sua bisavó). João Grilo propõe a Chicó que ele morra como um herói ao levar uma facada de um suposto cangaceiro (que seria o próprio João Grilo), o que daria a oportunidade para Rosinha alegar loucura e fugir, casando-se com Chicó na cidade grande, fugindo dos desmandos de seu pai e, por consequência, de seu controle. O que João Grilo não esperava era que um grupo de cangaceiros reais invadiria a cidade. O líder, Severino, saqueia o padeiro e a igreja. Na capela, os cangaceiros reúnem os personagens. Todos são assassinados.

Após a morte de Severino, João Grilo, Dora, Eurico, padre e do bispo, o grupo chega junto ao “outro lado” para o acerto de contas e quem se apresenta primeiro para buscá-los é o diabo. O grupo clama por um julgamento justo e João Grilo pede a intercessão de Jesus antes de serem levados ao inferno.

Neste momento da história o autor apresenta a misericórdia e o perdão. A mulher adúltera na hora da morte pede perdão ao marido que já sabia de suas “escapadas”, mas que não falava nada e mesmo assim a perdoou. O padre que busca convencer o bispo a perdoar o seu carrasco, a exemplo do próprio Jesus. Quanto ao cangaceiro Severino, ele foi perdoado por seus crimes serem “justificados” pelo fato de ver seus pais assassinados pela polícia, quando ainda era criança, e por esse motivo ele teria causado tantas outras mortes e cometido tantos crimes. Ele somente tinha sido vítima do sistema, presenciando a injustiça e a crueldade do mundo tão cedo, o que o deixou cego de ódio. E, como não poderia deixar de ser, João Grilo “o homem duro de morrer” recebe, após a intercessão de Nossa Senhora, uma segunda chance para voltar à Terra, com o propósito de ser alguém melhor, e como diz Chicó: “Oh, promessa desgraçada! Ah, promessa sem jeito!”

A obra é realmente espetacular e com temas muito importantes, como o coronelismo, na figura do coronel Antônio Moraes, e a representação do Jesus Negro, escancarando o racismo e o dogmatismo religioso.

O retrato da época em que se passa o filme é fascinante e percebe-se como a vida era difícil (e ainda é) para as pessoas do sertão. Nota-se, então, que a obra de Suassuna continua atual, pois todas as mazelas abordadas no filme fazem-se presentes até hoje, o que nos traz a reflexão de que se mudam as denominações de quem oprime, mas o oprimido continua sendo o mesmo: a grande parte do povo brasileiro.

No início dos anos 30, Chicó e João Grilo, dois pobres homens que vivem próximos da cidade de Taperoá na Paraíba, conseguem um emprego na padaria da cidade, onde moram o padeiro Eurico e sua esposa Dora, que vive sempre o traindo. Os patrões cuidam melhor de sua cachorra de estimação do que dos seus empregados, oferecendo comida estragada para Chicó e João Grilo e bife passado na manteiga para sua cachorra, causando constantes reclamações por parte de João. Saiba mais…

O Mito da Mani por Danilo Soares

A narrativa abaixo narra o mito da Mani, história contada nas escolas indígenas do povo potiguara da Paraíba. O texto está bilíngue, tupi-português e também se encontra na obra Tupi Potiguara Kuapa, a qual também sou autor.

Em Tupi

Oiepé paié aipó moranduba oimombe’u
orébo. Amõ kunhataĩ erimba’e o’ar o taba
pupé. Sera Mani. A’e sorybeté a’epe, opa
tabyguara o ausúba resé. A’e, Mani i mara’ar. Opakatu tabyguara i
aruru a’ereme. Osenõi yguá pajé, toipysyrõ Mani.
Kunhãtaĩ te omanõ biã. I anama onhotym setepuera o oka pupé,
o anama rekoaba rupi. A’ereme, Mani anama oiase’okatu,
setépuéra amõmo. Ko’ẽme, Mani retépuéra ‘árybo, amõ
‘yba senhũi. Sapó i porangatu, a’e sékatu abé.
Mani amana oserok aipo ‘yba Mani’oka
renõia: A’eriré tabyguara oimonhang toryba,
ku’i, kauietá abé.

Em Português

Um pajé contou esta história pra nós.
Uma menina nasceu um dia na aldeia. Seu
nome era Mani. Ela era feliz ali, porque
todos os moradores da aldeia a amavam.
Então, Mani adoeceu. Todo mundo da
aldeia ficou triste naquele momento.
Chamaram o pajé querendo salvar a
garota. Mas infelizmente a garota acabou morrendo.
A família dela enterrou seu corpo em sua
própria casa, de acordo com o costume de
seu povo. Depois disso, sua família chorou regando o
seu corpo. De manhã, sobre o corpo de
Mani, uma planta brotou. Sua raiz era bonita e muito gostosa.
A família de Mani deu-lhe um nome àquela
planta, chamando-a de Mandioca.
Depois disso, as pessoas da aldeia fizeram
festa com farinha e muito cauim.

O Negrinho do Pastoreio por Kike Cárcamo

O Negrinho do Pastoreio é um das lendas mais famosas do folclore brasileiro, sendo esse personagem mais conhecido na região sul do Brasil. A lenda surgiu em meados do século XIX e conta a história de um menino escravo, órfão de pai e mãe, que recebeu um milagre de Nossa Senhora por ser um inocente que sofre com castigos de um fazendeiro. O escravinho encontra o cavalo baio, favorito do patrão, após o mesmo ter fugido. Como boa parte das histórias populares, apresenta várias versões, mas todas apresentam um elemento em comum: a história de um jovem escravo afrodescendente, que é castigado por seu proprietário. Embora o racismo ainda esteja presente em nossa sociedade, naquela época a situação era bem pior, pois era praticada, abertamente, pelos senhores de engenho e, até mesmo, encorajada por outros segmentos da sociedade brasileira. Ganhou popularidade através de membros do movimento abolicionista, que a utilizaram para justificar a necessidade do Brasil terminar com a abominável escravatura.

É chocante ler nos livros que falam da sociedade brasileira do século XIX em que até membros da Igreja Católica defendiam a ideia que escravos trazidos da África não poderiam ser considerados seres humanos, uma forma de legitimação da violência imposta pelos portugueses aos escravos, herdada pelos brasileiros de pele branca, os donos do poder. O que dizer do hábito, por parte dos poderosos da época, de responsabilizar escravos e crianças por reveses ocorridos nas fazendas, tendo como consequência a prática de castigos físicos?

O fato de algumas versões da lenda incluírem a Virgem Maria, como padroeira do rapaz, invoca a influência e interesse da Igreja Católica e seus devotos, de mostrar a fé católica como fonte de ensino moral e direitos humanos à sociedade brasileira, de modo brando. Há outros aspectos interessantes a serem observados. Por exemplo, a ideia do cavalo fugitivo invoca o conceito da infância perdida. Também mostra a resiliência dos escravizados, a coragem de lutarem por sua liberdade.

É uma pena que o povo brasileiro não guarde com carinho e o respeito as manifestações culturais do seu passado. Para os jovens, as lendas brasileiras não têm o mesmo apelo de uma festa de origem cultural estrangeira como, por exemplo, o Halloween. O folclore é um elemento constitutivo da identidade nacional e deveria ser motivo de orgulho para o povo brasileiro. No entanto, o que vemos, hoje em dia, é o desinteresse dos jovens, que preferem seguir a cultura norte-americana, seja através da música, ou do audiovisual (séries, filmes e aplicativos).

Um povo que não se orgulha de suas raízes, que não conhece e valoriza seu passado, dificilmente entenderá o presente, e não terá condições de escrever um futuro que expresse sua identidade.

O Curupira por Paulo Câncio

Não se sabe, ao certo, quando surgiu a lenda do curupira. Os relatos mais antigos reportam ao século XVI. Esse ser mítico costuma ser descrito como portador de um corpo de menino de cabelos vermelhos, com força sobre-humana e pés voltados para trás, que vive mais para dentro nas matas. Confunde os caminhos dos que representam ameaça à floresta utilizando seus pés invertidos e o poder que possui de criar ilusões. Nada faz contra os que cortam madeira ou fazem uso de outros recursos naturais para a sobrevivência. Uma mera superstição? Existe alguma verdade na lenda ou surgiu como uma fantasia de uma civilização em formação? O quanto o povo brasileiro amadureceu desde aquela época?

Segunda metade do século XX. Era prática comum explorar a natureza de forma desordenada, sem levar em conta os danos causados à flora, à fauna e às vidas das pessoas que dependiam da preservação do meio ambiente para sobreviver. Eis que na década de 70, surge uma alma mais madura, um pioneiro, percussor do pensamento ecológico contemporâneo, Francisco Alves Mendes da Silva, o Chico Mendes.

Naquela época, na Bacia Amazônica, muitos trabalhadores rurais sobreviviam com base no que extraíam dos seringais nativos de uma parte da floresta integrante de terras de latifundiários. As terras foram vendidas a pecuaristas que desmatavam em larga escala, queimavam casas de seringalistas e os expulsavam. Chico Mendes, homem simples, homem do mato, organizou manifestações contrárias ao desmatamento e tornou-se um articulador político de reconhecimento internacional. Converteu-se em uma pedra no sapato dos pecuaristas que não tinham a percepção de que estavam diante da pedra angular de uma nova consciência.

Irmã Dorothy Stang foi uma versão feminina de Chico Mendes. Tinha, certamente, mais instrução – já que era uma freira – mas o mais importante, que ela tinha em comum com Chico, era o conhecimento da alma, do respeito à vida, da defesa dos que são injustamente atacados, da dedicação ao bem comum. Ela abraçou a causa dos camponeses pobres. O pouco que essas pessoas tinham era cobiçado por fazendeiros, homens de posse, grileiros guiados pela lei do mais forte, dispostos a atos criminosos para obter o que desejavam. Foi também uma articuladora de reconhecimento internacional, uma mulher de fibra, que entendia o valor da floresta para a vida como um todo e que amava seus semelhantes.

Século XXI. Bruno Pereira trabalhou na Funai, como Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recém Contatados. Dentro do princípio do direito do poder-dever de agir, não podia ficar omisso aos interesses indígenas, que deveriam ser defendidos pelo Estado que ele representava. Mas, como na década de 70 do século anterior, as estruturas de poder –  quer sejam a iniciativa privada, quer sejam o governo – eram autocentradas, impregnadas de interesses pessoais. Pressões políticas fizeram com que Bruno fosse afastado do cargo. Aquele homem não era definido por um cargo, mas sim por uma causa. Continuou ativo na luta por seus irmãos índios e pela sua irmã floresta, ao lado de Dom Philips, jornalista Britânico.

Chico Mendes, Irmã Dorothy, Bruno Pereira e Dom Philips. Trabalharam pelo bem comum, defenderam a floresta e os que dela dependiam para sobreviver. Não viviam por si mesmos, mas pelo coletivo. Almas puras como a de um menino simbolizado pelo corpo do curupira. Amor intenso ao próximo, simbolizado pelo vermelho do cabelo do curupira. Força para lutar mesmo com ameaça de vida, algo sobre-humano. Lutaram contra as ilusões do sistema até terem as vidas ceifadas por uma civilização ainda imatura. Mas a voz da floresta nunca se cala e sempre surgirão outros para personificar a lenda do curupira -defensor da floresta, defensor da vida.

Emular-se por Daiane Carrasco

Segundo a tradição popular, mulheres que mantinham relações carnais com padres eram amaldiçoadas. Transformavam-se em uma besta, com corpo em forma de mula, porém, sem cabeça. No lugar da dita cuja, saíam labaredas de fogo que iluminavam a noite e assombravam os passantes, principalmente nas noites de quinta-feira.

O mito da mula-sem-cabeça surge na Península Ibérica, lá pelos anos 1600 aproximadamente, em pleno período da Inquisição Espanhola (1458-1789). Era uma tentativa de intimidar as moças, que deveriam temer a maldição ao se interporem no caminho da Igreja Católica. Mas por que uma mula? Qual é a relação entre apaixonar-se por um homem proibido e um equino? Aí a explicação é linguística.

Emular é um verbo pouco usado no português contemporâneo. Tem dois significados, segundo os dicionários: competir ou rivalizar-se com algo ou alguém; esforçar-se para atingir um determinado propósito. No passado, “emular-se” era utilizado no sentido de não medir esforços para conquistar alguém. Conjugado, o verbo é pronominal. Ex.: Amália emula-se por Antônio. Porém, com o uso, o pronome acabou caindo: Amália emula por Antônio. Depois, o verbo perdeu o “e” e a preposição: Amália mula Antônio. O discurso recorrente, falado, e a ideia de que quem ama “perde a cabeça”, fizeram com que um verbo, “emular-se” se transformasse em um animal, “mula”.

Logo, o auge da expansão de Portugal e Espanha pelas Grandes Navegações, o domínio da Igreja Católica nas questões de Estado e na vida cotidiana das pessoas reforçaram o mito das mulheres amaldiçoadas que se transformam em mulas-sem-cabeça. Justamente porque emular-se de amor é proibido.

Bolinhas de Guaraná por Marcelo Elo Almeida

— Não, seu policial. Nós tava dentro da reserva quando eles pegou nós. Num foi na estrada não. Nós tinha pedido pra Funai pra protege nós dos invasores e eles disse que ia pedir pra Federal e nada. Muitos meses nessa situação, muito medo, seu policial. Todo mundo cada vez mais nervoso. Levei tiro de raspão quando cruzei com um garimpeiro perdido no meio do mato mês passado. Já disse, nós tava dentro da reserva, nas nossas terra. Vieram pelas costas quando nós tava tirando mandioca. Ameaçou nós e sentou com a coronha da espingarda na cabeça do Cauê. Eles foram embora ameaçando e o Cauê ficou desmaiado no meio dos pé de mandioca… Peguei ele nos braço e coloquei na voadera e vim pra cá… Mais de duas hora a toda pra chegar aqui em Manaus, quase que o diesel acaba. Não, seu policial. Nós tava com Jurandir e Laécio. Não, não tenho arma. Nem espingarda. Nem revorver. Não, nunca matei ninguém. Não, nunca recebi dinheiro do garimpo. Nunca gostei deles. É verdade, seu policial. Não trouxe documento, não. Nem pensei. Tá bom, vou pra delegacia sim. Vai pra mais de hora que os médico estão lá dentro com ele. Mas pode ser depois que o corpo dele sair de lá de dentro? O doutor disse que ele teve morte cerebral, seu policial. Só respira com aparelho… que eles tentaram reanimar mas não adiantou. Só onze ano. Ele perguntou se eu deixava doar os órgãos dele. Para eu pensar um pouco mas não tem muito tempo. Coração… rins … fígado. Parece que tem crianças na fila esperando pra receber. Se a mãe dele tivesse viva acho que ela ia deixar também. É, Cauê, é meu filho, sim. Perguntei se os olhos também, ele disse que não. Não, não tenho certidão. Tá na maloca. A pancada que matou ele deu hemorragia e os olhos dele ficou vermelhinho, que nem duas bolinhas de guaraná. Não, nunca fui preso não. É frutinha que fala, não é bolinha…  Os olhos não presta, a terra vai comer, mas os outros órgão tá bom e vai ajudar outros viver, foi o que o dotor disse. Eu vou dizer que pode pegar os órgão sim, vai viver nas outra criança. Posso esperar mais um pouquinho, seu policial?

***

Conta a lenda que um casal indígena sem filhos pediu ao deus Tupã que lhes concedesse uma criança. Tupã concordou e nasceu Cauê, um menino bonito e saudável, muito amado em toda tribo. Ele recebeu também o dom de falar com os animais e as plantas. Invejoso de tanta felicidade, o deus da escuridão, Jurupari, transformou-se numa serpente e picou o menino, que morreu. Muito tristes, os pais rezaram a Tupã, que lhes disse para que pegassem os olhos de Cauê e os plantasse na floresta que essa planta forneceria muita disposição para as pessoas. Dos olhos de Cauê nasce o guaraná, alimento e fonte de energia.

Livros Indicados

Os livros que indicamos de alguma maneira nos tocaram, ou tocaram o mundo literário.

As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro
Autor: A. S. Franchini

O folclore brasileiro é conhecido por sua riqueza e diversidade. Bebendo em fontes indígenas, africanas e europeias, reúne histórias transmitidas oralmente por séculos a fio, recontadas à sua maneira por cada por cada narrador. A.S. Franchini conta sua versão de algumas das mais emocionantes histórias do folclore nativo, nas quais o fantástico e o popular se unem para recriar antigos relatos sobre a formação dos povos e do território brasileiro. Algumas das mais famosas lendas indígenas, além de pitorescos contos populares e também monstruosas criaturas que povoam nosso imaginário dão vida às 100 melhores lendas do folclore brasileiro. Saiba mais…

O Saci
Autor: Monteiro Lobato

Uma deliciosa aula de folclore brasileiro. Com a ajuda de Tio Barnabé, Pedrinho enfrenta seu maior medo e consegue capturar um Saci. O sucesso o enche de coragem e ele decide explorar a floresta levando numa garrafa o duende de uma perna só, que usa gorro vermelho e fuma cachimbo. Os dois se tornam grandes amigos e encaram juntos a Curupira, a Mula sem Cabeça e o Boitatá, entre outros monstros que povoam o imaginário infantil. Durante as aventuras, o Saci ajuda Pedrinho a ampliar sua compreensão do mundo. Saiba mais…

Kuarasy no Mundo Tupi
Autor: Danilo Soares

É um livrinho infanto-juvenil que me orgulha muito, pois eu o escrevi com muito amor e carinho para as crianças e pré-adolescentes da minha aldeia. O protagonista é inspirado em meu primo Joanderson, potiguara habitante da aldeia Jaraguá. Mas não para por aí, pois a curiosidade em aprender tupi é baseada naquela curiosidade dos meus alunos do Fundamental I da Escola Estadual Indígena Dr. José Lopes Ribeiro, os quais amam brincar no idioma, cantar e falar. Saiba mais…

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Até a próxima edição amigos leitores!