Edição 22 – Padim Ciço – Junho 2025

Edição 22 – Padim Ciço – Junho 2025

Introdução | Resenha do livro: Pedra Bonita | Filme: Baile Perfumado (1996) | Um milagre no sertão | Jesus não há de descer dos céus e fazer milagres entre o povo sertanejo | Um político entre coronéis e cangaceiros | Vida de Romeiro | Os retirantes | O santo do sertão | Livros Indicados | Corpo Editorial | Escritores da Edição

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Agradecemos à Basílica Santuário Nossa Senhora das Dores por ceder as fotos de seu acervo. Arquivo Fotográfico de Renato Casimiro e Daniel Walker

Cícero Romão Batista. Padre Cícero. Padim Ciço. Se tivesse nascido na Europa, há muito tempo ostentaria o status de santo. Mas foi justamente por ter nascido no agreste nordestino que teve sua conduta sacerdotal questionada pelo milagre da consubstanciação da hóstia em sangue durante as missas celebradas por ele. Maria Araújo, uma mulher pobre e negra, seria instrumento do Divino? Por que as hóstias consagradas transformavam-se em sangue na boca dela? Fanatismo? Fé? Fraude? Eram muitas perguntas. O fato é que o povo sempre acreditou.

A crença em um milagre no sertão era comungar de um Cristo que jamais se esquecera deles, sertanejos, em meio à seca e à miséria. Um fiapo de esperança tecido por um Padre impedido de exercer seu sacerdócio. Existiria um roteiro mais nordestino do que esse? Talvez seja por esta razão que Padim Ciço é cultuado até hoje, passados mais de 90 anos da sua morte.

Nesta edição, tentaremos jogar um facho de luz sobre o místico homem que atrai romeiros de todo o país até Juazeiro do Norte, no Ceará. Estima-se que cerca de um milhão de pessoas visitem o município por ano. Não é nossa intenção convencer ninguém a crer ou não em Padre Cícero. É nossa visão de cultura, arte e história sobre o nosso povo, tão devoto.

Boa leitura!

Resenha do livro: Pedra Bonita por Daiane Carrasco

José Lins do Rego, escritor conhecido por obras como “Menino de Engenho (1932) e “Fogo Morto” (1943), romances que enfocam o ciclo da cana-de-açúcar e seus atores sociais, publica em 1938 “Pedra Bonita”.

Pedra Bonita faz referência a duas torres de pedra colunares, com cerca de 30 metros de altura, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte, Pernambuco. Ambas têm minérios que refletem a luz do sol. Mas o romance não é sobre a beleza natural das pedras. É uma trama sobre violência, miséria e fanatismo religioso.

Em 1836, João Antônio dos Santos pregava que Dom Sebastião, o rei português desaparecido em 1578, na batalha contra os mouros em Alcácer-Quibir, estaria encantado na Pedra Bonita. Quando libertado, o rei traria prosperidade ao sertão. Muitos trabalhadores deixavam as fazendas para se juntar ao séquito de súditos de João Antônio, o que incomodou os latifundiários e a Igreja, que via o movimento como blasfêmia. Com a pressão dos poderosos, ele fugiu para o Ceará, deixando seu cunhado, João Ferreira, administrando seu culto sebastianista.

Se João Antônio poderia ser considerado um “maluco beleza”, o mesmo não valia para João Ferreira, que era um louco fanático. Vivia uma vida poligâmica, casado com sete mulheres, obrigava as noivas a iniciarem-se sexualmente com ele, antes de consumarem o casamento. Os delírios de Ferreira foram se tornando cada vez mais insanos, até que passou a pregar que Dom Sebastião só se desencantaria se a Pedra Bonita fosse lavada com sangue. Os fiéis, desesperados pela fome e esperançosos na justiça do Messias Português, sacrificaram seus filhos, algumas vezes degolando-os ou atirando-os contra as pedras.

A multidão, percebendo que mesmo com o sangue derramado a promessa não se cumpriu, assassinou Ferreira. Um vaqueiro denunciou a carnificina às autoridades. Houve repressão policial e vários integrantes da seita morreram. Era maio de 1838. Foi o fim do “Reino da Pedra Bonita”.

José Lins do Rego nos faz mergulhar nessa tragédia 100 anos depois. Antônio Bento, o Bentinho, é o protagonista da história. Deixado ainda pequeno na Vila do Açu, sob os cuidados do Padre Amâncio, cresce com o coração puro. Porém, não é totalmente acolhido pelos moradores do vilarejo por conta do seu local de nascimento, a Pedra Bonita. Até que resolve desvendar os mistérios de sua origem. Assim divide-se o romance: Primeira parte – a Vila do Açu; Segunda parte – Pedra Bonita.

Nesta obra, que junto com “Cangaceiros”, publicado em 1953, integra o “ciclo do cangaço”, temos os personagens típicos da época: o irmão de Bentinho, Aparício, é a personificação de Lampião. Embora Padre Cícero seja citado no romance (“Um oficial que desfeiteou o Padre Cícero não durou um mês.”), padre Amâncio é o espelho do mesmo: conciliador, austero, sempre de batinas gastas.

A reflexão presente no romance é a complexidade do sertão. É tentador para qualquer um de nós, em 2025, julgar aquelas pessoas, mas o autor conduz magistralmente sua ficção, de modo que entendemos as razões de seus personagens. Qual é a perspectiva de vida para um menino pobre, no meio da seca? Ora! Fugir com cangaceiros, ganhar fama e status. Se o Estado não lhes dá nada, melhor tomar à força o que deveria ser de direito. Até onde alguém iria por uma esperança ínfima de não precisar lutar até a exaustão para simplesmente ter o que comer? A sabedoria popular, o misticismo, a violência e o fanatismo são peças indissociáveis de uma região onde o homem é um estranho em meio à natureza agreste.

A história é cíclica e se repete. Caso contrário, não teríamos uma “bancada da Bíblia” no Congresso Nacional. Talvez estejamos esperando Dom Sebastião até hoje, ou pior: continuamos a oferecer sacrifícios em Pedra Bonita.

Pedra Bonita
Autor: José Lins do Rego

Publicado pela primeira vez em 1938, 6 anos após o lançamento de Menino de Engenho (sua obra de estreia), Pedra Bonita dá início ao que ficou conhecido como o “Ciclo do Cangaço” nas narrativas de José Lins do Rego. Se nas obras que compõem o Ciclo da Cana-de-Açúcar (Menino de Engenho, Doidinho, Banguê, Usina e Fogo Morto) Zé Lins mostrou um Brasil em transição e declínio, com o fim dos engenhos de açúcar tradicionais e a chegada das máquinas, aqui ele explora um Nordeste profundamente marcado pela seca e pelo movimento do cangaço, no qual o próprio presenciou no começo da sua infância. Para isso, ele usa os mesmos recursos narrativos e explora personagens complexos, que são sempre profundamente marcados pelo pano de fundo social no qual estão inseridos. O protagonista da obra é Antônio Bento, também conhecido como Bentinho, uma criança que, por causa da seca, é deixado pela mãe aos cuidados do tio, o padre Amâncio. Os dois vivem na Vila do Açu, que fica bem próximo a Pedra Bonita, lugar onde ele nasceu. Tentando passar um pouco dos seus ensinamentos para o sobrinho, Amâncio coloca Bentinho em um seminário, onde ele acaba sendo mal visto por causa do local do seu nascimento e envolvimento do seu irmão no cangaço. Assim, Bentinho tem que decidir seguir os ensinamentos do seu tio e aguentar as implicâncias da vila, ou seguir os passos do irmão. Com uma história que fala sobre amadurecer, achar seu lugar no mundo e lidar com preconceitos, sempre com um forte teor histórico e social, Pedra Bonita reforça o melhor de José Lins do Rego: consciente, imersivo e complexo. A ilustração da capa é de Mauricio Negro, e o texto de apresentação é da jornalista e escritora Adriana Negreiros, autora de Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço (Objetiva, 2018) e A vida nunca mais será a mesma: cultura da violência e estupro no Brasil (Objetiva, 2021). Saiba mais…

Filme: Baile Perfumado (1996) por Paulo Câncio

Benjamim Abraão (Duda Mamberti), mascate libanês, amigo íntimo de Padre Cícero (Jofre Soares), é um idealista. Não tem recursos materiais, nem é pessoa influente. Transita entre homens poderosos usando da lábia e da ousadia e confiando na sorte. Sua meta é fazer um filme sobre Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos). Para isso, Benjamim precisa de contatos que o permitam chegar até ele, da receptividade do próprio Lampião e do equipamento de filmagem. Consegue conquistar ou, pelo menos, amolecer corações tirando fotos. A condição tecnológica da época fazia das fotos um artigo raro.

O libanês negocia com um homem de posses o empréstimo do equipamento de filmagem. Oferece em troca o crédito do dinheiro que resultará do sucesso do filme.  O “benfeitor” é um homem de negócios, um homem prático, que não comunga do espírito aventureiro de jogar com o destino de Benjamim. A empreitada pode ser realmente bem-sucedida? Exige alguma forma de garantia para o equipamento. Benjamim vai atrás de um coronel, amigo de um amigo, que dá essa garantia e faz a ponte com Lampião.

Lampião se autodenomina como verdadeiro governador do sertão. Para ele, o não reconhecimento do título, autoproclamado, justifica ações violentas de sua parte. Em alguns momentos, vemos um lado sensível do Rei do Cangaço, como apreciar cinema e música. O título do filme vem de uma canção cantada e tocada por um músico que faz a travessia de um rio, de barco, junto com o bando de Lampião.  Demonstra também um lado religioso, tendo grande admiração por Padre Cícero, na época já falecido. Em perseguição pela polícia, foge atacando, corre e atira sem nenhum sinal de medo em seu semblante. 

O principal perseguidor de Lampião é um major que tem como ponto de honra capturá-lo ou matá-lo. Existe um ódio recíproco entre os dois. O major pressiona de modo agressivo uma mulher para saber do paradeiro de Lampião, já que o filho dela teria sido apadrinhado por ele. Provavelmente, se refere à Volta Seca, um dos integrantes dos Capitães da Areia de Jorge Amado (artigo da edição 18 do Literato Dente-de-leão).

Benjamim Abraão passa um tempo com o bando. Oferece a Lampião o crédito do dinheiro do filme e o aumento da fama que o filme lhe trará. A relação do recém-chegado com Padre Cícero também contribui para a receptividade do cangaceiro. São filmadas cenas do cotidiano do bando, incluindo expressões artísticas e momentos de oração.  Benjamim entrevista Lampião. Em uma combinação de tato e ousadia consegue filmar confrontos simulados.

— Capitão, ser um pouco atrevido faz parte do nosso trabalho.

De antemão, pede perdão pelo possível atrevimento em propor filmar cenas de luta. Lampião sente o atrevimento, mas não se exalta. Apenas pergunta:

— Você não tem medo de morrer?

O libanês fica em silêncio.

— Tem horas que eu acho que não.

Talvez Lampião tenha pensado que se tratasse de um confronto real com a polícia. A questão é que ele terminou, depois, consentindo simular um confronto para ser filmado. Conquista máxima da empreitada.

Quando retorna à cidade, Benjamim exibe as filmagens e uma declaração de Lampião de que jamais havia consentido, nem consentiria de novo, a presença de alguém de fora no seio do bando. Interrogado, Benjamim disse que se sentia até muito seguro no acampamento de Lampião.

O filme foi indicado a diversos prêmios, tendo vencido o Festival de Cinema de Brasília (1996), na categoria Melhor Filme. Também é considerado um dos 100 melhores filmes nacionais de todos os tempos, segundo a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema, a ABRACCINE. Vale a pipoca!

Baile Perfumado (1996)

Direção: Lírio Ferreira, Paulo Caldas | Roteiro: Hilton Lacerda, Lírio Ferreira

Elenco: Chico Diaz, Luiz Carlos Vasconcelos, Jofre Soares

Conta a saga real do libanês Benjamin Abrahão, mascate responsável pelas únicas imagens de Virgulino Ferreira, o Lampião, quando vivia no sertão brasileiro. Amigo íntimo de Padre Cícero, Benjamim mascateava pelo sertão e exercitou seu espírito mercantilista convivendo intimamente com o bando de Lampião. Infiltrou-se no grupo para colher imagens e vender os registros do famoso criminoso pelo mundo afora. Saiba mais… (Wikipédia).

Um milagre no sertão por Igor Pires Leon

Cícero Romão Batista

Cícero ouviu calado a sua suspensão. Dom Joaquim José Vieira e seus auxiliares chegaram à conclusão de que era um embusteiro, um charlatão, que em nenhum momento houve o milagre, apregoado por ele e pelos seus fiéis, da consubstanciação da hóstia em sangue durante a comunhão oficiada pelo próprio na capela de Nossa Senhora das Dores. Não havia lugar na Igreja para mistificadores ou para aproveitadores da fé alheia. Para as autoridades, o Padre estaria mais próximo da superstição do que do sacerdócio.

Depois de algum tempo de reflexão, Padre Cícero alegou inocência e, se houvesse um culpado, esse seria Jesus Cristo, pois os milagres eram obra d’Ele. As autoridades eclesiásticas ficaram horrorizadas com suas palavras, sacudiram-se em suas cadeiras.

— O senhor está blasfemando! − gritou um auxiliar indignado.

Cícero Romão encarou-o com seus olhos pequenos.

— Jesus Cristo atuou através de mim e da Beata Maria Araújo por dois anos.  Não sou culpado, muito menos a pobre mulher, pois fomos escolhidos pelo Divino. Vossas Eminências duvidam das obras que Ele realizou − disse o padre.

— O senhor insiste no milagre da consubstanciação da hóstia em sangue?

— Insisto, pois foi obra de Jesus Cristo, queiram ou não. Os senhores pregam a caridade, a doutrina cristã, mas quando Cristo se manifesta, não acreditam e punem aqueles que Lhe servem de instrumento.

— Novamente está blasfemando! Está indo contra a ordem estabelecida! – prosseguiu energicamente o mesmo auxiliar.

Cícero Romão encarou novamente o Clero, abrindo um sorriso complacente.

— Como queira, Eminência. Aceito a minha penitência, embora injusta, pois contra o vosso poder nada posso fazer. Infelizmente levarei para o túmulo o estigma de ser um proscrito da Igreja. Mas um dia, serei reabilitado e ninguém se lembrará dos senhores. O povo, que mal sabe rezar, compensa a Deus com uma fé que move montanhas. Muitos hão de vir, esperando por um milagre, pois esta terra já viu acontecer.

— O senhor está querendo dizer que está acima de nós?

— Sou um homem simples, um servo de Deus. Só quero servir a Ele e às pessoas que necessitam de ajuda espiritual.

Os eclesiásticos observavam cada gesto de Cícero. Diante deles estava um homem determinado, que acreditava nos milagres que havia feito. Ele partiu para Roma e conseguiu sua reabilitação, mas o Bispo, nos moldes do Direito Canônico da época, não a aceitou e manteve seu veredito. O Padre permaneceu obediente, mesmo achando injusta a sua suspensão, ficando até o fim de sua vida usando a batina e assistindo às missas como leigo.

Jesus não há de descer dos céus e fazer milagres entre o povo sertanejo por Daiane Carrasco

Carta de uma testemunha

Meu sangue, minha querida.

Escrevo-te para relatar-te os fatos que presenciei nos últimos dias. Reflito sobre as razões pelas quais Dom Joaquim José Vieira deseja imputar um embuste ao Padre Cícero. Como servo de Deus, que afirma ser, não deveria alegrar-se com a manifestação da sacralíssima ressurreição em sua Diocese? Parece que a suposta ação do Divino na pobre beata Maria Araújo levou-o a um estado de desgosto.

Após eu, como farmacêutico, não encontrar nenhum indício de farsa, como um conluio entre o Padre e a beata para aumentar o número de fiéis nas missas, concluí a ausência de explicações racionais para a hóstia que transforma-se em sangue na boca de Maria Araújo. Cheguei a testar a dita cuja. Fi-la gargarejar uma forte solução de perclorureto de ferro, um coagulante, a fim de eliminar a possibilidade de sangrarem-lhe os vasos sanguíneos da língua. Dom Joaquim rejeitou o parecer de nossa comissão. Resolveu chamar-lhe outra, dessa vez, composta só pelo clero. Ora, não obstante a investigação científica dos fatos, só resta-lhes um julgamento de fé, tendencioso, diga-se de passagem, pois os encarregados estão subordinados ao maior interessado – o Bispo.

Não é o milagre a pedra no sapato, e sim os envolvidos. Caso tivesse acontecido sob a batina de Dom Joaquim, com os punhos ricamente adornados em crochê e engomados com clara de ovo, os sinos dobrariam até o Vaticano. “Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.” Ainda que eu não leia a Bíblia com frequência, minha menina, alguns versículos caem como uma luva.

Segundo a retórica cristã, Deus está entre os pequeninos. Mas não se trata de um deus, é uma Igreja – secular, hierárquica – incapaz de transformar a sociedade, pois simplesmente a reflete: os primeiros são os primeiros e os últimos permanecem os últimos. Jesus não há de descer dos céus e fazer milagres entre o povo sertanejo. Se veio, é melhor que volte. E se não voltar, é melhor que O esqueçam. Todavia, pelo tanto que o povo crê, nem fechando a paróquia a memória há de se apagar.

Minha cara, reze. Não por mim, mas por Padre Cícero e por Maria. É certo que eles estão muito mais próximos do Altíssimo do que nós. Entretanto, quanto mais imbuídos da Graça, mais tentados eles serão. Sabes qual é a ironia mais cruel? Sinto que desta vez o crucificado fez-se pão e sangue e ofereceu-se ao povo, mas não será acolhido nesses altares.

De seu saudoso pai, Joaquim Secundo Chaves.

Um político entre coronéis e cangaceiros por Gustavo Caperutto da Mota

“Nunca desejei ser político […] Vi-me forçado a colaborar na política.”
Padre Cícero, 1934.

O ano era 1911. Tu hás de crer: escolheram a mim como primeiro prefeito de Juazeiro… Se eu o queria? Difícil dizer. Acho que no fundo, bem lá no fundo, eu sabia que era o único jeito de fustigar aquilo tudo que havia lá, naquela terra de tanto tropel, tanto banzé. É claro que eu sabia que encolerizaria alguns e deixaria outros espinhudos feito mandacaru seco, mas o que é que havia de se fazer? Missão de Deus é missão que se cumpre, pela salvação das almas daquela gente tão calejada pelo sertão.

Logo no meu primeiro dia no tal poleiro dos urubus, veio até mim um grupo de cabras engomados. Todos conhecidos, diga-se de passagem.

— Seu Padre Cícero! Prefeito Padre, como é que lhe chamo, hã? — perguntou-me o coronel Francisco, que tomou a frente do bando.

— Ora, pois deixe disso — eu respondi, com toda a cordialidade que me cabia como servo eterno de Deus — Eu sou é Cícero; Padre, só se tu quiseres.

O coronel virou rápido para trás, soltou uma risadinha mofina, e foi acompanhado por alguns mais. Era bicho que queria palco.

— É o que aqui se quer, seu Padre! — ele confirmou, para a surpresa de ninguém — é o que se quer: que sejas apenas padre.

Dali, viraram as costas e se tornaram a se encafuar nos seus buracos de poder. E eu ia até esses buracos; ora, tu não me venhas com esta cara de suçuarana com fome me julgar. Era preciso! De que outro jeito eu iria dobrar os joelhos dos ricos para que olhassem aos pobres? Conversava de igual para igual com jagunço, pois era assim que tinha de ser. Juazeiro não virou esse mundéu bonito só na base da fé, não. Foi preciso muito gasto, muita alpercata que se estourou na caminhada dura dos meus anos.

Foi pelo meu nome que aqueles homens com quem não se brinca aceitaram selar um pacto. Afinal, desde aquele milagre, quando aqui era ainda do Crato — eu ganhei muito nome. Lampião mesmo veio me pedir a benção muitos anos depois, e eu o acolhi numa prosa.

— Ah, deixe de ser besta, homem de Deus — eu disse a Lampião na época — Largue logo esse cangaço que só é desgraça, pros que morrem e pra quem está matando.

Eu vi ali, nos olhos caídos de modorra de Virgulino, um pedido de mais palavras, mas que não tinha coragem de pedir, porque me considerava. Todos ali me respeitavam e me queriam bem. Então eu disse a eles:

— Quem matou, não mate mais. Quem roubou, não roube mais. Ainda é tempo, homem.

Lampião não mudou o olhar, mas acho que algo dentro dele mudou. É das coisas que só se sente ali, na hora, vês? Ele até que tentou me falar umas palavras em seguida:

— Padim Ciço, entenda que…

Não havia o que entender, era só tomar atitude, com coragem e de coração tranquilo voltado a Deus. Então, eu completei:

— Deixe. Deus também há de deixar o arrependido.

A propósito, digo aqui a ti que não julgo Lampião, nem os coronéis. Cada qual com sua razão, que não se tira, porque a régua moral verdadeira é a de Deus.

Em tudo isso, o povo sempre me quis. E eu quis o povo. Não podia rezar missa, já que me suspenderam. Nem Sua Santidade Leão XIII conseguiu reverter o desmando de quem não me queria, tu crês? Fui absolvido, mas ao voltar da Santa Sé, encarei o poleiro dos urubus mais uma vez. Falaram até em excomunhão! Mas eu tinha a quem servir, os meus amiguinhos. Eles sempre me deixaram regalado pra viver. Isso basta a mim e a eles também, pois não abandonaram os preceitos de Deus.

Sigo assim. Quem sabe algum dia me perdoem por esses e tantos outros pecados. Porque pequei, claro que pequei. Não viste a história das armas? Benzi, sim, muita arma, porque tinha que benzer. Apertei mão de sangue, porque tinha que apertar. E não me arrependo — era preciso, e Deus é testemunha e me vai cobrar o que é justo! Quanto à Igreja, se algum dia se arrepender, aí já são outros quinhentos, que, de verdade, não me põe a cabeça numa maluqueira sem fim, não, filho… e sabe por quê? Porque eu tenho meus noventa anos, e muito, muito ainda a fazer.

Vida de Romeiro por Karine Souza e Pousas

Padim Padi Ciço
Na missa a hóstia lhe deu
No próprio corpo e sangue
Jesus se converteu
Bem na boca da beata
Maria que recebeu

Por política ou medo
A igreja titubeou
Padim excomungado
O bispo sem entrecho
Correu no sertão o fato
O povo se arreteou

Romaria de Candeias
Milagres começaram
Romeiros cada qual
Com motivo achegaram
Seca, fome ou tonteia
Seus pedidos contaram

Tem história da grávida
Filho desenganado
Por graça dava o nome
Nasceu é homem formado
Cícero de Juazeiro
Assim que ele é chamado

Romeiro que comove
Facão no canavial
Talho fundo abriu a perna
Chaga descomunal
Dotô disse Aleijado
Jamais lida rural

Médico não sabia
O romeiro queria
Com a fé d’ouro maciço
Que a ferida sarasse
Bença de Padim Ciço
E um regalo levasse

Levou a imitação
Deixam no Santuário
Lenho por corpo são
Como prova dos amores
Ciço e Mainha das Dores
Colhem tal relicário

Os retirantes por Marcelo Elo Almeida

A marcha lenta

— Tá indo pra onde, cidadão?

— Pro Crato, seu moço.

— Todo mundo descendo pro sul e o senhor subindo?

— Vou ver o Padim. Rezar não tá adiantando, quem sabe pedindo.

— O Padim tá nas últimas. Se você conseguir falar com ele, e acho que não vai conseguir, ele vai pedir pra que reze por ele. Fizeram uma barreira na frente da cidade, ninguém de fora entra.

— Oxe, mas eu sou daqui do Cariri mesmo, de um sítio lá em Brejo Santo.

— Então, cabra, é tipo como o seu que eles não querem lá.

— Como eu?

— Faminto.

Januário retoma sua marcha lenta, alpercata arrastada, sem se despedir. Conhecia o caminho, mais alguns quilômetros daria na praça, onde em junho o povo se fartava de umbu assado e milho verde, ele mesmo saudoso daquelas noites mais frescas, ou melhor, menos quentes. Bem antes da praça, antes mesmo que ele pudesse avistar a torre da igreja, a marcha foi interrompida.

— Tá com sede, cidadão? Tá vendo aquele angico lá na frente? Então, lá tem água e farinha também – o guarda aponta a espingarda na direção indicada e, virando-se para seu subordinado – Barnabé, acompanha ele.

Embaixo do pé de angico, uma barraca de campanha abrigava alguns homens fardados absortos por um carteado. Atrás, fileiras de barracas menores a perder de vista, mulheres e crianças do lado de fora sob o sol da tarde. Dentro era mais quente.

— Tem um pouco d’água, moço?

— Acabou, vai chegar mais no fim da tarde. Toma, caneca, prato e esteira. E pode entrar na primeira barraca desocupada.  

— Só tem mulher e criança aqui, seu moço?

— Os homens estão todos na frente de trabalho. Você deu sorte, só vai pegar no pesado amanhã. E você, veio sozinho?

— Deixei a mulher cuidando das criação no sítio. O que é isso, seu moço? – Januário aponta para a cerca de arame farpado que percorria todo perímetro do acampamento.

— É cerca, nunca viu não?

— Cerca eu só conheço de pau de aroeira.

— Bem-vindo à civilização, cidadão.

A paisagem branca contrastava no horizonte com o azul límpido do céu. Pra esquerda, ao longe, uma serra azulada, com uma miragem de nuvem no topo. Pra direita, o arame farpado cortando a visão da cidade. 

As horas demoravam, mas passaram, e os homens da frente de trabalho chegaram quase junto com a carroça de mantimentos. Água, farinha d’água e, sorte do dia, jerimum, ainda crua. Trabalho pras mulheres. Januário, recostado na cerca, só fala depois de comer.

— Muito trabalho lá no açude?

— Muito teve até agora, o fiscal disse que não vai ter dinheiro pra abril, nem a pouca miséria que dão pra gente. Trabalhar só pelo prato de comida?

— Valei-me, meu Padim Ciço. O que que eu vou ficar fazendo aqui?

— O povo tá dizendo que vai pegar o pagamento da semana e descer no sábado, tentar achar coisa melhor.

— Aquele ali é o cemitério da cidade, é? – Januário aponta para as dezenas de cruzes longe do acampamento.

— Não, é daqui mesmo.

— Você vem com a gente?

— Eu vou com vocês, mas vou pro meu sítio.

— Fazer o que lá? Se enterrar na própria cova?

— Na fé do meu Padim, esperar por chuva.

Em poucos dias, algumas famílias se colocaram em marcha, sem pouso certo, buscando alento pelas estradas. No desvio do caminho para seu sítio, Januário desfiava o terço que levava em seu bolso, esperançoso em ouvir de longe o chocalho de Viçosa, enquanto um mandacaru floria na paisagem branca.

No Ceará do início da década de 30 do século
passado, foram construídos sete centros de
acolhimento de flagelados fora das cidades,
apelidados de campos de concentração, inclusive
às portas do Crato, cidade de Padre Cícero, onde
a fome e a doença consumiram milhares de vidas.

O santo do sertão por Christiane Andréa

Nasceu menino e são
No sertão de Juazeiro
Cresceu bento, candinho
Erê de devoção.
Padim Ciço, Cicinho
Padre, guia, e, Santo
Do povo rezadeiro

Homem predestinado
À santa vocação
Destino proclamado
Fé, vela, procissão
Rapadura, água forte
Milagres, driblou a sorte
Pecado e confissão.

Vivia com ousadia.
Na escuta e compaixão,
Era o sol do dia a dia
Nos rumos do sertão.
Lia a Bíblia sagrada
Benta purificada
Era sua direção

O povo lhe seguia
Sincera comoção
Vigário mestre guia
Diz a velha história
Não fazia distinção
Da finesse à escória
Verdadeiro cristão

Foi expulso do altar
Cordeiro do alto clero,
Sem missa pra rezar
Mas seguiu com esmero
Virou bom conselheiro
Pregava: ficai atentos
Deus nos quer o coração.

Livros Indicados

E aí, literatos?! Não podemos descuidar dos pequenos! Formar novos leitores é uma tarefa importante. Que tal uma leitura em família?

A Eleição da Criançada
Autor: Pedro Bandeira

O país estava em época de eleições para presidente, governadores, senadores e deputados, e a escola aproveitou a oportunidade para passar aos alunos os valores do exercício democrático e de cidadania. Mas, como alguns políticos pichadores, uma turma de alunos resolveu fazer o mesmo. Ainda bem que, com bom-senso, tudo se resolveu. Saiba mais…

Quem vai salvar a vida?
Autora: Ruth Rocha

É verdade que os pais ensinam os filhos, mas também é verdade que os filhos ensinam os pais. Pais e filhos, em muitos sentidos, crescem juntos. Nesta história, por exemplo, um menino aprende na aula de Ciências que devemos preservar o meio ambiente e acaba por levar toda a família ― pai e mãe, principalmente, pois a irmã já compartilhava de suas ideias ― a repensar seus hábitos. O pai deixa de jogar cigarro pela janela do carro, a mãe tenta tomar banhos menos demorados etc. Tudo narrado com a leveza de estilo que só a Ruth Rocha tem, mesmo quando o assunto é sério. Quem vai salvar a vida? faz parte da série Constelação, na qual também se encontram Azul e lindo: planeta Terra, nossa casa e Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros. Saiba mais…

O segredo do violinista
Autora: Eva Furnari

É época de Copa do Mundo, Beto e Miguel estão entusiasmados. No prédio onde moram ocorrem pequenos furtos, mas quando some a bola de futebol a coisa fica séria. Eles suspeitam do vizinho, um estranho violinista. E juntamente com Isabel, os garotos se metem em grandes encrencas para desvendar o mistério. Saiba mais…

Continue acompanhando em nosso site: Edições de 2023, Edições de 2024 e Edições de 2025.

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Corpo Editorial

Daiane Carrasco Chaves

Editora

Daiane Carrasco
Oceanóloga. Escritora.

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Autora do Livro Ozzy & Jonny.

Designer e Criação

Sérgio Fernandes
Consultor de T.I. & Terapeuta Corporal.

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Autor do Livro Zé das Campas.

Escritores da Edição nº 22 de 2025 – Padim Ciço

Paulo Câncio
Escritor & Pianista

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Autor dos Livros Trajetória de Aventureiro
& Momentos da Vida (Direto com Autor)

Igor Pires Leon
Escritor

Graduado em História e Pós-Graduado em Cinema, é autor das seguintes obras:
Veludo Azul contos, pela Editora Nauta; As incoerências e insatisfações de um casal desapaixonado; O caso da mulher desaparecida; O toque do despertador pelo Clube de Autores.

editoranauta.com.br
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Gustavo Caperutto da Mota
Autor e editor

Membro da Academia Itanhaense de Letras e organizador do CENI – Clube de Escrita Nós de Itanhaém.

Responsável pela Noz Editoria – @nozeditoria Instagram: @mota.gus

Karine Souza e Pousas
Escritora, Pedagoga, Comunicóloga e Ghostwriter

Instagram: @karinecsouza

Marcelo Elo Almeida
Escritor

Instagram: @marcelo.eloalmeida

Autor do Livro Nhorrã

Christiane Andréa
Sexóloga, Mestre em Educação

Ativista na temática da autoproteção e prevenção das violências contra crianças e adolescentes.

Escritora de literatura Infantojuvenil e Educadora em Sexualidade, é autora do primeiro livro nacional a atender a Lei 14. 164 de 2021 sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica, e institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.

Atualmente é Coordenadora da Comissão de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil de Santos.

Livros Publicados:
Vamos Conversar? Sobre Violência Sexual Infantil, Vamos Conversar Mamãe? (e-book), Por Todas as Flores do Mundo – Uma Oficina Poética de Prevenção Para Meninas.

www.papaleseditorial.com.br/christiane-andrea

Instagram: @christianeandreaoficial

Escritora e Sexologa Christiane Andrea