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Etarismo é o preconceito associado à idade cronológica. Raramente é tão explícito quanto as situações de racismo, por exemplo, mas tem impactos diretos sobre a experiência cotidiana dos indivíduos. Torna-se comum a naturalização da desvalorização de pessoas mais velhas, enxergando-as como incapazes ou inúteis, mesmo que veladamente, ou, ainda, a falta de oportunidade para os mais jovens, principalmente no universo corporativo, onde exige-se “experiência”.
Socialmente, é como se as pessoas sentissem que estão “verdes” para certas ocupações ou com o prazo de validade vencido para outras. O etarismo gera uma sensação de inadequação e de cansaço. É cruel particularmente para a faixa dos 50 anos em diante.
No caso das mulheres, a meia-idade acompanha a chegada da menopausa, encerrando a vida reprodutiva. Como não se produz mais mão-de-obra para o capitalismo a partir da menopausa, é como se a existência feminina se justificasse apenas pela juventude e fertilidade. Para os homens, a perda do vigor físico e a diminuição da atratividade para conquistas amorosas/sexuais faz surgir o “Peter Pan”, aquele que não aceita crescer, seguir com o ciclo da vida. Há exceções, claro, mas a idealização da eterna juventude encontra eco nas mídias sociais, no cinema, na publicidade, na oferta de serviços de saúde e etc.
Nesta edição, os textos enfocam diferentes perspectivas do fenômeno social do etarismo. Não temos respostas para todas as questões inerentes ao assunto, mas tentamos enxergar ao menos a ponta do iceberg. Boa leitura!

Resenha do livro: O Jovem, por Marcelo Elo Almeida
“Há cinco anos, passei uma noite inapropriada com um jovem estudante que vinha me escrevendo havia um ano e queria me encontrar”. É assim que o livro começa, como se a autora estivesse ajoelhada em um confessionário.
Sem suspense, sem delongas, a crônica é curta, pouco mais de trinta páginas. Annie Ernaux vai direto ao ponto, expondo, de forma clara e indubitável, seu romance de dois anos com um jovem trinta anos mais novo. Ele, 25, universitário, sem grana e sem preconceitos; ela, 54, já com sua carreira mais que consolidada, exercendo a dominância financeira no casal, e que não se envergonha de escolhas que partem de suas necessidades.
Mas não, ela não está num confessionário. Ela está em praça pública, colocando a questão do etarismo feminino também com um viés sexual, exercendo um direito e expondo-o. Ela não reivindica nada, apenas comunica, sem se importar com opiniões ou reprovações. Não que ela não tenha receios a respeito da relação, apesar da devoção amorosa de seu parceiro. Mas ela tem, acima de tudo, coragem para se assumir, inclusive em suas poucas inseguranças.
“O Jovem” não foi escrito recentemente, mas em 2005, acerca de um relacionamento do final do milênio anterior. Enquanto, ainda hoje, escreve-se sobre o tema como uma luta por direitos e aceitação social, a francesa já está vários passos à frente, aceitando-se e vivendo segundo sua vontade.
Não se trata de uma mulher desesperada, vendo sua juventude esvair-se e buscando alternativas para manter seu homem ao seu lado. Ela conhece os limites que a natureza impõe e os aceita. Tem plena consciência de que não poderá satisfazer o desejo de paternidade de seu parceiro e não se culpa por isso, afinal ele também sabe dessa impossibilidade. Conversarem sobre o tema é uma forma de viver o impossível, com todo sofrimento inerente a essa impossibilidade.
Uma outra diferença, a de classe social, também é explorada na crônica. Com hábitos e costumes dos estudantes com pouca renda, como comprar o queijo mais em conta ou sempre comer em lugares mais baratos, seu parceiro a faz reviver seus tempos de dureza. Ele é uma repetição de sua realidade quando jovem, mas sem os perigos de um retorno às dificuldades financeiras.
Ao repetir sua própria existência, ela se sente como um personagem que representa seu próprio papel, revivendo-se de forma bem consciente, sem interdições. Ao reviver ela se reafirma perante a si e à sociedade. O modo de fazerem sexo também é uma volta ao passado, em cima de um colchão colocado diretamente no chão, com a bandeja de desjejum ao lado.
Ernaux percebe as interdições sociais, mas essas não a afetam, como fica claro a partir da página 25. Não é o olhar do seu companheiro ou uma autocrítica que a faz ver suas rugas; é o olhar de reprovação de outros casais que lhe mostra seu corpo envelhecido. Psicanaliticamente, ela não dá bolas para o ego, para a aceitação do outro, simplesmente vive. Essa capacidade de ser ela mesma talvez seja o motivo de seu sucesso.
Herdeira de Simone de Beauvoir e do existencialismo, Annie Ernaux além de viver, reflete. O jovem é a repetição de sua vida, da qual ela dispôs como bem quis e representa sua continuação, e não um saudosismo dos casos do passado. Para ela, sexo não é apenas a satisfação de um desejo, mas a criação contínua de um modo de viver. Vive o seu presente, com suas alegrias e dores, com plena consciência da finitude. “De todo modo, pela sua própria existência, ele era minha morte.”
Cabe frisar também que o seu companheiro, o jovem, a aceita integralmente, como ela mesma afirma quando diz que não vê sua velhice nos olhos do parceiro. O feminismo foi além do que se imaginava, atingiu também alguns homens. Em Ernaux, não há ilusões, não há culpa, mas ela não se fez sozinha. Ela é resultado de décadas de luta coletiva feminista para que todas as suas potencialidades pudessem se exercer e se mostrar, sem pedir licença nem sentir vergonha. E, por isso mesmo, ganhando o Nobel de Literatura.


O Jovem
Autora: Annie Ernaux
Se a capacidade de dizer muito com poucas palavras é um traço característico de Annie Ernaux, ela parece ter atingido um dos pontos mais altos de sua produção literária em O jovem. Nas breves páginas deste livro magistral, a escritora dá conta de uma miríade de temas e afetos ao rememorar o relacionamento que teve, aos 54 anos, com um estudante trinta anos mais novo. Como de costume, Ernaux nunca fala de uma só coisa ao escrever. Para além da diferença de idade dos amantes, estão presentes em O jovem reflexões sobre o desejo feminino, o relacionamento entre pessoas de classes sociais diversas, a passagem do tempo, a memória ― individual e coletiva ― a escrita e o papel da mulher na sociedade francesa dos anos 1990, que pouco difere da nossa em certos aspectos. Absorta pelo romance, Ernaux descreve: “Meu corpo não tinha mais idade. Era necessário o olhar pesado e reprovador de clientes ao nosso lado num restaurante para que eu me desse conta desse corpo. Saiba mais…

Filme: O Último Amor de Mr. Morgan (2013), por Sérgio Fernandes
“O último amor de Mr. Morgan” (2013), da diretora alemã Sandra Nettelbeck, não é o filme típico que um marmanjo como eu procuraria assistir. Mas aqui no Literato missão dada é missão cumprida! Então, lá fui eu. Essas são as minhas modestas considerações…
Matthew Morgan (Michael Cane), é um senhor que perdeu sua mulher há três anos e mora em Paris. Vive num processo de luto sem fim. Ela era professora de Francês, sua intérprete constante, razão pela qual nunca se interessou em aprender o idioma. Um dia, é ajudado por uma jovem no ônibus que simplesmente gosta de conversar com ele e começam uma amizade. Pauline Laubie (Clémence Poésy), uma jovem professora de dança, também solitária, carente de relações familiares, acaba encontrando aconchego no convívio com Mr. Morgan.
A jovem professora de dança é um sopro de vida na pacata rotina do solitário viúvo. Ela o faz perceber o quanto o seu tempo é desperdiçado: comer bem, ler, passear, aprender francês (ele tem uma professora que, na prática, traduz tudo aos garçons para que ele consiga fazer uma boa refeição em um restaurante uma vez por semana) – nada tem sentido. Mr. Morgan, no auge do seu desalento, resolve atentar contra a própria vida.
A tentativa de suicídio serve para que os filhos, que vivem nos Estados Unidos, apareçam para visitar o pai. A filha, Karen (Gillian Anderson), parece mais preocupada com os bens e com o destino do pai após a perda da mãe. O filho, Miles (Justin Kirk), traz tensão à trama: para ele, Pauline não passa de uma aproveitadora.
Ao longo da história, descobre-se um fio condutor: pai e filho têm ambos corações quebrados. Matthew delegou à esposa a responsabilidade pela criação dos filhos, gerando um abismo afetivo entre eles. O que resta depois da ausência da pessoa mais importante da vida dos dois? Mágoas, solidão e ressentimento. Pauline tenta reaproximá-los.
O roteiro acerta ao apostar nessa direção: em vez de ser mais um filme clichê sobre um homem muito mais velho se apaixonar por uma mulher em franca juventude, o mesmo apoia-se na conexão entre dois seres humanos que se encontram e se apoiam mutuamente. É um amor sincero, profundo, muito mais transcendente do que simplesmente uma atração.
Além das tocantes atuações de Michael Kane e Clémence Poésy, “O último amor de Mr. Morgan” debate as delicadas relações entre pais e filhos quando um envelhece e o outro amadurece. Deixamos de ser pais quando os filhos têm idade para criar seus próprios filhos? Deveríamos ter idealizado nossos pais como modelos ou heróis? Quais erros têm mais peso, dos pais ou dos filhos? A quem podemos culpar se nossa vida der errado? São perguntas sem respostas prontas, mas as reflexões estão lá. Preparem os lencinhos…
Encerro com um diálogo para derreter até os corações mais gélidos… Pauline diz: “Em tudo há uma rachadura e é através dela que a luz acaba entrando.” Ao que Matthew responde várias cenas depois: “Você é a rachadura do meu mundo.”

O Último Amor de Mr. Morgan
Direção: Sandra Nettelbeck | Roteiro: Sandra Nettelbeck
Elenco: Michael Caine, Clémence Poésy, Gillian Anderson
Título original: Mr. Morgan’s Last Love
Por mais que more em Paris há bastante tempo, Matthew Morgan (Michael Caine) não conhece a língua local. Muito graças à sua esposa, Joan (Jane Alexander), que sempre foi sua intérprete pelas ruas da capital francesa. Entretanto, Joan faleceu há três anos e, desde então, Matthew vive triste e solitário, ocupando seu tempo com aulas de inglês ocasionais. Um dia, ele é ajudado no ônibus por Pauline (Clémence Poésy), uma simpática professora de dança. Não demora muito para que eles se tornem amigos, já que ela lembra a esposa de Matthew e ele lembra o pai de Pauline. Entretanto, tudo muda quando a tristeza fala mais alto e Matthew tenta o suicídio. Saiba mais… (Adoro cinema).


Filme: Boa Sorte, Leo Grande (2022), por Paulo Câncio
Quatro encontros de uma senhora idosa com um garoto de programa jovem em um mesmo quarto de hotel. Para ele, uma questão de rotina; para ela, algo inteiramente novo. No início do filme, os personagens aparecem de costas, refletindo a ideia de uma postura reservada. Ambos usam nomes falsos. Ela está presa ao passado permeado por um planejamento rígido e tenta manter essa estratégia no encontro, para evitar surpresas. Ele aparenta tranquilidade, mas evita falar sobre si mesmo, disfarçando bem ou mal o desconforto. Os dois são defensivos à sua maneira.
Nancy (nome que adotou) estava viúva há dois anos. Seu falecido marido, conforme descrito por ela, planejava tudo e ela ficava tensa, com medo de que as coisas não saíssem como ele esperava. Esse estilo de vida se estendia às relações sexuais. Ela nunca havia tido um orgasmo e achava que isso era impossível de acontecer. Em uma fase de sua vida, havia sido professora de religião, onde vestia também a máscara da rigidez.
Leo Grande dizia gostar e até sentir orgulho do que fazia. Segundo ele, oferecia um serviço de ser uma companhia; tinha uma boa conversa, sabia fazer uns 20 coquetéis e fazer sexo era algo que poderia ou não acontecer. Seu objetivo era deixar o(a) cliente satisfeito(a), dedicando-se a ele(ela). Talvez por que satisfação significasse um agendamento futuro; talvez por que houvesse um ponto de honra nisso. Entendia que cada cliente tinha suas particularidades, com seus desejos e necessidades psicológicas.
Nancy tem muito medo. Mesmo dentro do planejado, ela trava. Medo de não gostar. Medo de Léo não gostar. Julgamento por estar praticando aquelas coisas. Julgamento de sua própria aparência; chega a especular se ele não precisaria de uma pílula para ter uma ereção já que ela, como idosa, não oferecia atrativos físicos. Léo, sorridente na maior parte do tempo, age no sentido de fazê-la relaxar, cria situações como puxá-la para dançar e brincadeiras para atravessar a barreira criada por ela própria. Procura explorar os pontos de beleza no corpo dela. Quando ela se ausenta (para ir ao banheiro, por exemplo), a fisionomia de Léo se altera, mostrando o quanto a situação está sendo desafiante para ele. Apesar de estar além das expectativas dela, ele, volta e meia, tenta vender a ideia do orgasmo. Ela poderia ter abandonado tudo no primeiro encontro; ele diz que não quer ir embora, pois percebe o conflito nela e acha pessoas em conflito interessantes. Em outro momento, ele diz que ela não é obrigada a fazer nada e que talvez ela só queira conversar; cita outros clientes para que ela se convença que não há problema nisso.
No terceiro encontro, Nancy revela que pesquisou a verdadeira identidade de Léo Grande. Ele fica furioso. Ela havia pago por uma fantasia, aquele limite era tudo o que ele exigia. Ela queria transformar a fantasia em realidade. A única aventura que havia vivido na vida. Ele fala algo mais pessoal sobre sua mãe. Pede para que Nancy não o agende mais. Sai furioso, mas, apesar disso, dá um beijo no rosto dela. O quarto encontro chega a acontecer…
O processo como um todo foi terapêutico para ambos. Um filme que prende a atenção, sendo, na sua maior parte, uma conversa entre duas pessoas. Uma abordagem inteligente da natureza humana.


Boa Sorte, Leo Grande
Direção: Sophie Hyde | Roteiro: Katy Brand
Elenco: Emma Thompson, Daryl McCormack, Isabella Laughland
Título original: Good Luck To You, Leo Grande
Em Boa Sorte, Leo Grande, Nancy Stokes é uma professora que acabou de se aposentar. Apesar de ter tido uma vida satisfatória, existe uma coisa que ela nunca teve: Nancy nunca fez um sexo digno de chamar de bom. Na verdade, Nancy nem sabe se o que ela fez foi de fato sexo. Mas isso são águas passadas, Nancy está obstinada em seu plano de ter, pelo menos uma vez, uma noite de sexo prazerosa. E tem tudo desenhado em sua cabeça: ela chamará um jovem trabalhador do sexo e reservará (anonimamente) um bom quarto em um hotel. Ela até sabe o nome do jovem: Leo Grande. Leo sabe o que faz e sabe que faz bem o seu trabalho. Apesar de parecer somente mais uma cliente e mais algumas horas de trabalho, Leo está certo que essa é a coisa que mais o intrigou ele, e que Nancy é também uma pessoa diferente. Saiba mais… (Adoro cinema).

Homens grisalhos são sexy, mulheres grisalhas são desleixadas, por Igor Pires Leon
Viviane parou diante do espelho do banheiro logo após o banho; os cabelos grisalhos e longos estavam molhados e desalinhados. Viu um belo rosto, ainda que marcado por algumas rugas. Também não era nenhuma jovenzinha, não tinha mais a pele lisa como em seus vinte e poucos anos; havia chegado aos sessenta, dois filhos, um neto. Não era nenhuma garotinha e não tinha a intenção de ser. Passou os dedos finos entre os cabelos, achando-os bonitos. Gostara do visual novo, pois estava cansada de todo mês ter que retocar a tintura, essas coisas. O grisalho lhe caía bem, mas foi chamada de desleixada pelo marido porque ela deixara de tingir os cabelos. Ora bolas, que diferença faria uma tintura no cabelo? A idade estava passando e assim seria inexoravelmente. Recordou-se de sua mãe com os cabelos branquinhos. Para Otaviano, o marido, aquilo era um absurdo; ele dizia que a mulher ficava mais rejuvenescida, mais bonita, sem aquele ar de desleixo, de “acabada”, envelhecida, ficava mais atraente com os cabelos tingidos. Afirmava que mulher de cabelos brancos era puro desleixo, enquanto que homens de cabelos brancos eram sexy. Viviane achava graça, ria, não se incomodava com os comentários do marido, que se esforçava, sem qualquer sucesso, em manter a forma e uma aparente “virilidade”.
Viviane não queria se entregar à neura de fazer exercícios físicos, de deixar o corpo malhado, de fazer procedimentos estéticos no rosto ou até mesmo em seu corpo, como lipoaspiração, silicone nos seios, nas nádegas – essas coisas que a mulherada andava fazendo loucamente à procura da juventude eterna, para chamar a atenção dos homens e de outras mulheres. Não, ela não era afeita às intervenções. Queria envelhecer como sua mãe envelhecera, como suas tias. Ficava horrorizada com sua irmã mais velha que fazia isso e aquilo somente para agradar ao marido exigente, para ele não procurar outra lá fora. Besteira. Viviane inspirava-se em Brigitte Bardot, considerada sexy symbol em seu tempo e que causou espanto por tomar a decisão de envelhecer naturalmente.
Sentia-se feliz pela decisão tomada, muito ao contrário de algumas “amigas” ou até mesmo de sua irmã que não se davam conta de que o tempo passa para todo mundo, que ninguém volta a ser jovem. Ficavam frustradas quando um procedimento não dava o resultado que esperavam e voltavam ao especialista para inúmeros retoques. Um preenchimento labial que não ficara bem, o nariz que, santo Deus, ficara pior do que antes! Aquela harmonização facial, que horror! Ria de toda esta doideira, da insanidade imposta pela cultura da juventude eterna. “Não, estou fora!”, pensava.
Estavam para sair, iriam à uma festa na casa de um primo de Otaviano, cirurgião plástico, mas Viviane não estava muito disposta, pois sabia que encontraria siliconadas, pacientes do primo de Otaviano, com os rostos esticados, que falariam de seus procedimentos estéticos, assuntos que pouco interessavam a ela. Colocou um vestido que delineava o corpo um pouco fora de forma, deixando-a com uma barriguinha saliente. Achou-se bonita. Autoaceitava-se.
Otaviano estava à porta do quarto, observando-a, admirando-a. Deu o braço a torcer, a esposa estava radiante. Um largo sorriso nos lábios, um desejo de possuir a mulher ali, naquele instante. Aproximou-se, abraçou-a e beijou-lhe cinematograficamente os lábios finos. “Você está linda!”
— Acha que estou bem?
Otaviano concordou.
— Estou bem? − ele perguntou.
— Um garotão! − brincou.
Ambos riram.
Viviane olhou-se no espelho de corpo inteiro, deu uma volta, ajeitou os cabelos grisalhos, passou um batom. Abriu um sorriso e disse alegremente: “Foda-se”!

Os novos velhinhos, por Karine Souza e Pousas
Minha mãe vai buscar os netos depois do Pilates. Já sei que eles vão com os avós para o clube logo após o almoço, uma longa caminhada debaixo de um sol escaldante. Isso não é problema para pessoas de quase 70 anos acostumadas a fazer trilhas no mato e cruzar a cidade a pé. A nova geração de velhinhos está chegando com ânimo total, a ponto de deixar os jovens na dúvida se carregarão tamanha vitalidade quando for a vez deles. Talvez você esteja lendo este texto e se achando bem jovem. Então, vale destacar que uma senhorinha de 35 anos — isso mesmo, você leu certo: Se-nho-ri-nha! — já tinha superado a expectativa de vida mundial de 32 anos e também a brasileira de 33,4 anos em 1900. Claro que outros dados da época, como a alta taxa de mortalidade infantil e o período de guerras, impactaram diretamente no cálculo da expectativa de vida. Ainda assim, é fato que hoje vivemos mais e melhor.
Vários tabus e preconceitos em relação ao etarismo estão caindo por terra, mas ainda temos muito chão pela frente. A mesma avó que faz Pilates, dirige para todo lado e tem plena autonomia, trabalha há décadas em escolas públicas. Nos últimos 20 anos, ela nem tenta mais lecionar em uma escola privada, pois sabe a dificuldade que é se inserir no mercado de trabalho (ou neste caso, em novos setores) depois dos 40. Existe uma mentalidade atrasada por parte de vários contratantes de que após os 40 anos homens e mulheres não têm mais a mesma capacidade produtiva. Obviamente, chega um momento em que perdemos nossa vitalidade. Porém, para executar quais funções? A falta de políticas públicas acaba empurrando esse contingente para os empregos informais.
Logicamente, muitas profissões podem ser executadas por pessoas 50+, 60+, mas há de se ter o entendimento de que a vida existe além do trabalho. Nações longevas, como o Japão, enfrentam o desafio de uma sociedade envelhecida, com muitos idosos dependendo do sistema previdenciário, concomitantemente à queda das taxas de natalidade, inviabilizando a reposição de mão-de-obra no mercado de trabalho. Via de regra, são os trabalhadores ativos que sustentam os inativos. E aí? Como garantir dignidade a toda a pirâmide etária, sem comprometer as futuras gerações?
Ainda pensando nessas décadas extras de vida, encontramos uma indústria midiática armada para acertar em cheio o novo público-alvo. Ela vende que a felicidade da terceira idade é curtir a vida: viajar, sair com os amigos, beber, comer, desfrutar do bom e do melhor que foi reservado para estes anos. Claro que não sou contra a implementação destes hábitos, porém, é importante entender que nem todo velhinho tem acesso a este estilo de vida que é vendido, principalmente porque a renda média dos aposentados cai abruptamente, seja por perdas salariais em relação à vida laboral ativa, ou por despesas médicas. Assim, a felicidade midiática numa fase em que muitos amigos já se foram e o dinheiro anda curto pode ser cruel.
Estes novos velhinhos têm rompido muitos paradigmas. É um equilíbrio muito delicado. Vive-se mais, mas se aproxima-se do portão de saída. Não esperamos que todas as vovós estejam fazendo bolo para seus netinhos e que os vovôs estejam felizes em ler o jornal em uma cadeira de balanço. Mas é temerário que os novos velhinhos caiam na síndrome de Peter Pan. A tendência “forever young” faz com que muitos idosos se percam, atentando para uma corporeidade que um dia tiveram. O paradoxo é que os hippies de outrora têm 80 anos! Tem vovôs mais descolados do que os netos.
A experiência que se ganha com os anos é vital para a sobrevivência da espécie. É a fêmea mais velha que guia a manada de elefantes em busca das melhores fontes de água das savanas. Conosco não é diferente. Caso contrário, morreremos de sede. Quero velhinhos dispostos a revelar seus cabelos brancos. Quero também ver a geração mais jovem disposta a aproveitar o que aqueles de mais idade têm para nos mostrar. Precisamos aceitar e entender que, se der tudo certo, nós também chegaremos lá. Se é que ainda não chegamos…

A solidão na menopausa, por Fernanda da Fonseca Pereira
Mulheres: sexualidade e menopausa sob a égide do patriarcado
Os ciclos menstruais demarcam uma série de mudanças hormonais e físicas que preparam o corpo da Mulher para uma possível gravidez. São, em média, 450 ciclos menstruais ao longo da vida, desde a menarca[1] até a menopausa[2]. Logo, a cada gota de sangue vai embora uma parte da vida reprodutiva. Assim, se acreditarmos que a vida das mulheres só tem sentido pelo seu papel reprodutivo, nossas vidas acabam na menopausa. Durante muito tempo, validamos esse pensamento. Sentimos medo e repulsa ao nosso próprio sangue.
A fertilidade constitui um “valor de uso” das mulheres para o patriarcado[3]. Ao longo dos tempos e em diferentes sociedades, foram valorizadas pelas suas capacidades e seus serviços reprodutivos e sexuais. As mulheres foram dominadas ou compradas para a escravidão em diferentes tempos históricos. Seus préstimos sexuais eram parte de sua mão-de-obra e seus filhos, propriedade dos seus senhores. Assim, a escravidão de mulheres, com a subjugação da sua sexualidade, combinado com o racismo e o machismo, precedeu a formação de classe e a opressão de classes[4]
O que isso importa, ao escrevermos sobre a menopausa e a solidão? Importa porque a atualidade da condição feminina, assim como da humanidade, é construída historicamente por meios das relações sociais, econômicas e políticas. Logo, os papéis sociais definidos para a constituição do ser mulher ao longo dos tempos, a coloca numa posição de subjugação, a qual lutamos contra, até os dias de hoje. Gerda Lerner ao analisar a nossa sociedade, sob a égide do patriarcado, destaca que a opressão e a exploração econômica se baseiam na sexualidade feminina como mercadoria, bem como na apropriação pelos homens da força de trabalho e do poder reprodutivo das mulheres, sendo aquisição direta de recursos e pessoas[5].
Contemporaneamente, as Mulheres ainda sofrem com a comercialização da sua sexualidade, sendo explicitado nos sistemas de símbolos que constituem as relações sociais e que demarcam o papel da Mulher, nos diferentes momentos históricos. Assim, os padrões de beleza sustentam o fetiche pelos corpos sarados e férteis. Boca carnuda, bumbum arredondado e empinado, seios fartos. Vale tudo para manter o padrão: academia, botox, plásticas, etc.
As músicas de maior sucesso são sobre elas e o recado é para elas: de como devem se comportar para serem atraentes. Dessa forma, é cmum letras de músicas destinadas às “novinhas” sempre dispostas ao ato sexual, treinadas para a corrida frenética pelo sexo. É como diz a música “a novinha senta a pampa (…) Mo-movimentando senta e trepa, e trepa, e trepa”. O fetiche provocado pela letra da música, pelas imagens, pelas ações não ditas, mas expressas pela mídia, alimentam o mercado de “consumo de mulheres”. O Brasil é um dos países que lidera o consumo de pornografia na internet. Em 2022, o Brasil ocupou o 10° lugar mundial no consumo de pornografia na internet sendo, na maioria das vezes, (61%) homens os consumidores[6].
A posição de classe das Mulheres, ao longo da história, se tornou consolidada e estabelecida por meio de suas relações sexuais, expressas sempre, em certa medida, pela falta de liberdade e pela dominação paternalista, estabelecendo um contrato de troca, não escrito: sustento econômico e proteção, oferecido pelo homem, em troca da subordinação com serviços sexuais e trabalho doméstico não remunerado. Até 2022, mais de 11 milhões de mulheres estavam fora do mercado de trabalho para cuidar dos filhos ou da casa. Muitas mantinham-se com no mercado de trabalho, mas com sobrecarga doméstica e falta de apoio para conciliar trabalho-família[7].
Dessa maneira, atender aos patrões de beleza estabelecidos atualmente e ser uma mulher atraente é uma das formas de usufruir dos privilégios de classe dos homens, mantendo-se com legitimidade e proteção. Mas quando essas mulheres passam da fase reprodutiva para a não reprodutiva? Muitas vezes, sem consciência da nossa própria história de luta e conquista, conectadas estritamente com as estruturas familiares e com frágil vínculo com grupos de outras mulheres, sem qualquer tipo de solidariedade feminina e coesão grupal, as mulheres seguem sozinhas. Sozinhas com o seu corpo, sozinhas com as marcas impostas aos corpos que envelhecem. Flacidez, rugas, palavras pejorativas que atribuem às suas vidas, como se não valessem mais a pena serem vividas. Velhas, muito velhas, para quase tudo na vida! Velhas para utopias, velhas para sonhar, velhas para sangrar, velhas para engravidar (inclusive de sonhos) – velhas para viver! Quem consome o que é velho? Afinal, mulheres sempre foram objetos de consumo. Nessa concepção, a Menopausa anuncia que a “pausa” também é no viver!
Nessa lógica, não é incomum, ao longo da história, atribuírem processos patológicos às mulheres que estão no climatério/peri-menopausa[8] ou menopausa. Assim descreve o tratado médico do século XVIII: “O climatério é um ano considerado supersticiosamente como azarado. Tempo enfermo para o temperamento e perigoso por suas circunstâncias. Se está climatérica quando se está de mau humor[9]“.
Ainda hoje, o climatério, momento de transição entre o período fértil e a menopausa (última menstruação), está associado, na nossa sociedade, a uma questão médica. Nessa fase, temos a queda do estrogênio, apontando como principais sintomas as ondas de calor e suores noturnos (sintomas vasomotores); fogachos, com sensações súbitas de calor no rosto pescoço e tórax, junto à sudorese e vermelhidão; alterações urogenitais manifestando-se pelo ressecamento vaginal e incontinência urinária; mudanças na pele e cabelos; alterações de humor e cognitivas; impactos na saúde óssea e cardiovascular, e alterações metabólicas, com ganho de peso, principalmente maior acúmulo de gordura no abdome.
A narrativa sobre as “deficiências” nos corpos das mulheres a partir da menopausa contempla os interesses da indústria farmacêutica e mantém o controle social sobre os seus corpos, prometendo a partir da reposição hormonal a juventude, vitalidade eterna, a produção da feminilidade, que se materializa nos corpos a partir de um ideal de beleza[10]. O fornecimento de produtos pela indústria farmacêutica, através da reposição hormonal, transforma o estigma da menopausa associado ao fim da vida sexual, e sinaliza a possibilidade de ter relações sexuais sem o risco de engravidar, bem como outros ditos benefícios, como a ausência de sangue e tensão pré-menstrual (TPM), combatendo diversos sintomas da velhice e a recuperação da libido. A testosterona é indicada nos consultórios médicos para “salvar casamentos” e garantir o eterno desejo sexual e a prevenção da solidão, mantendo seus companheiros atraídos sexualmente.
Os corpos das mulheres na menopausa são abjetos, perdendo a função e o valor socialmente determinado, e nesse sentido as intervenções hormonais possibilitam normalizá-los. Aqueles corpos que ainda resistem ao padrão de normatividade acabam sendo excluídos e invisibilizados, por não seguirem a rede de saberes e as relações de poder a respeito dos padrões de saúde, gênero e envelhecimento.
Enfim, longe de perceber as mulheres como fadadas à solidão, a partir do seu período não reprodutivo, talvez a melhor forma de superar os valores patriarcais seja potencializando as mulheres para que sejam agentes transformadoras da sua própria história, junto com outras mulheres, valorizando nossas ancestrais. Para isso, é urgente desnaturalizar a subordinação ao patriarcado e construir um mundo livre de dominação e exploração, ressignificando o papel da mulher dentro da existência social, e não presa a uma esfera de domínio. Por fim, a vitimização das mulheres está longe, no meu entendimento, de ser a melhor forma de mudar esta situação. Talvez um caminho possível seja a luta coletiva em prol de uma sociedade mais equitativa. Para isso, é ingente romper com a desigualdade de gênero, classe e etnia, bem com a mercantilização e o controle social sobre os corpos e a sexualidade feminina.
[1] Menarca, é o início da menstruação, geralmente na adolescência.
[2] A menopausa demarca o fim da menstruação, normalmente entre os 45 anos e 55 anos.
[3] Compreende-se o patriarcado como um sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem. Esse não constitui o único fundamento estruturador da sociedade brasileira, mas, é uma das categorias principais junto a divisão da população em classes sociais imensamente desiguais em relação às oportunidades de vida, e as diferenças raciais ou étnicas, que são determinações da dominação sofrida pela mulher na sociedade brasileira.
[4] LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Editora Cultrix: São Paulo, 2019.
[5] LERNER, Gerda (2019).
[6] Fonte: https://www.tnh1.com.br/noticia/nid/brasil-esta-entre-os-paises-que-mais-consomem-pornografia-na-internet/
[7] Fonte: IBGE, 2022.
[8] Até finais da década de setenta utilizava-se a palavra climatério para designar o período que antecedia o fim da vida reprodutiva e menopausa para nomear o cessar definitivo do mênstruo, porém em 1980, um grupo científico de investigação da menopausa da OMS propõe uma padronização da terminologia e sugere que o termo climatério seja abandonado e substituído por peri-menopausa. Na prática, o que vemos é o uso indiscriminado dos dois termos. Fonte: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/WJgGfLxdL9rWM5jsQpWSYbv/.
[9] PALACIOS, S. Climatério y menopausa. Madrid: Mirpal, 1996.
[10] Para saber mais, acessar: https://www.scielo.br/j/pcp/a/DTQVk7GJnFSRMKMN48zQFWb.

Menopausa Power, por Christiane Andréa
“Menopausa é a adolescência ao contrário: os hormônios descem, a rebeldia sobe.” — disse Rita Lee, com a sabedoria de quem já viveu de tudo… Confesso que a primeira vez que ouvi esta frase ri muito, mas não tinha a real ideia do seu significado. No momento, curto a roqueira com o ar condicionado no mínimo, um copo de gelo com água e muita rebeldia. A menopausa não vem com flores, nem com bombons, mas acompanhada de cápsulas de amora e chá de aquileia. O vinho tinto não é mais dupla de um Emental, mas sim de tofu… E penso: ainda não chegou o fim do mundo!
E sabem o que é mais louco? Ainda há quem ache que cruzamos o fim da linha, que viramos objeto de ornamentação depois dos 50. HA-HA-HA. Mal sabem que, depois que os hormônios se despedem, a gente finalmente para de se importar com um monte de bobagem, como com a opinião alheia.
A menopausa ainda é vista como um grande tabu. Um segredo não confessável entre amigas. Mas por quê? Talvez revele a idade? Mas se olharmos para mulheres cinquentonas que estão no auge do sucesso, como Viola Davis e Fernanda Torres, fica evidente que essa fase não tem nada a ver com declínio ou invisibilidade. Pelo contrário, pode ser uma era de plenitude e poder. Um empoderamento maduro e real, diante da liberdade de expressão que permite opinar ideias sem medo, sem censura e às vezes sem filtro! Gargalhar sem ter que explicar, sentir a plenitude da felicidade nas coisas mais simples.
Viola e Fernanda, ambas premiadas, brilhantes, desafiam qualquer noção ultrapassada sobre o que significa envelhecer. Uma com a sua sagacidade, a outra, com seu humor afiado. As duas menopausadas, vivenciando sua plenitude. Uma quebra de paradigmas diante da data de validade social, por assim dizer.
No entanto, o silêncio sobre a menopausa persiste e insiste no desconforto de aceitar que o feminino não se limita à juventude, que a beleza não se conecta apenas com a jovialidade e o desejo não expira com o último ciclo menstrual. Precisamos ressignificar essa etapa da vida, celebrar o corpo, a liberdade e a potência feminina.
Se durante a vida fértil precisamos agradar aos outros, a menopausa é sobre agradar-se a si mesma – uma taça de espumante bem gelada, boas risadas com as amigas e um novo “brinquedinho” para se divertir. Enquanto uns ficam chocados com nossa modernidade, estamos nas academias da vida malhando, recomeçando amores, ou nos conectando ao TikTok. Porque menopausa não é fim de nada. É só o começo de uma nova fase. E como diria nossa “padroeira da liberdade”: “… longe de qualquer problema, perto de um final feliz!”

O falo frágil, por Fernando Buzzetto
Rodolfo recebeu uma mensagem de Kleber, um amigo de infância que não via há muito tempo. Rodolfo sempre foi pacato, tímido. Kleber era vaidoso e competitivo.
Moravam na mesma rua, frequentaram a mesma escola, mas após o término do segundo grau, o ensino médio de hoje, seguiram caminhos diferentes. Enquanto Kleber se mudou para São Paulo, onde estudou economia e fez carreira em uma grande empresa do mercado financeiro, Rodolfo permaneceu em Limeira, cidade situada a 250 km da capital.
Kleber se casou com Helena, colega de turma na faculdade. Mulher culta, inteligente e dinâmica, que ajudou o marido a prosperar na carreira. Conforme ele subia de cargo, aumentavam as responsabilidades, o trabalho em horários prolongados e as constantes viagens. Ela nunca se opôs, sempre apoiou Kleber, facilitando a sua dedicação ao trabalho. Helena lhe proporcionava um ambiente familiar saudável. Tiveram três filhas: Isabelle, Marina e Patrícia, com diferença de idade de dois anos entre uma e outra.
Rodolfo, por sua vez, se casou com Elaine, uma professora primária, muito dedicada. Abriu uma loja para venda de ferramentas. Estabeleceu-se em um ponto comercial na Rua Santa Cruz, no Centro da cidade, e prosperou. O faturamento era suficiente para pagar as despesas da empresa e permitir uma retirada suficiente para que a família tivesse uma vida sem muitos luxos, mas sossegada. Tiveram dois filhos: Maria Clara e João Vicente. O casal mantinha uma vida profissional paralela. Ela devotava-se ao trabalho na escola, cuidava dos filhos e da casa, enquanto ele trabalhava em horário comercial na loja, mas ajudava em casa, revezando com a esposa na criação das crianças.
Os anos passaram e os amigos de infância se afastaram, mas sempre se falavam quando Kleber visitava os pais. Em um desses encontros, Kleber convidou o amigo para um churrasco na sua chácara em Cordeirópolis, cidade próxima a Limeira. Foi assim que um conheceu a família do outro.
Helena gostou de Rodolfo, achou interessante como a vida lhe parecia simples. Por outro lado, Elaine considerou Kleber uma pessoa arrogante, preocupada em demonstrar seu sucesso, falando de maneira agressiva de como conduzia as negociações.
Outro acontecimento que aborreceu Elaine foi que o tempo todo o amigo de seu marido fazia questão de enfatizar as suas conquistas, em uma clara atitude de ostentação. Chegou a falar com desdém do automóvel popular de sua família, dizendo que Rodolfo precisava de um carro melhor para ajudar a compor a sua imagem.
Depois desse dia, nunca mais as famílias se reuniram, mas os amigos de infância ainda mantinham contato por mensagens.
XXXX
Certo dia, Kleber convidou Rodolfo para visitá-lo em São Paulo, mas este rejeitou, invertendo o convite para que ele viesse até Limeira, o que foi aceito. Marcaram um almoço. Elaine não quis acompanhar o marido, pois não conseguiu apagar a impressão negativa que teve dele.
No dia combinado, Rodolfo foi até o local, aguardou um bom tempo e, quando achou que o amigo, por algum motivo, não compareceria, ele o viu estacionando em frente ao restaurante. Kleber desceu acompanhado de uma mulher jovem, que não era Helena. Estranhou, pois na conversa que tiveram, ele disse que levaria a esposa. Ingênuo, pensou ser uma das filhas que, na última hora, substituiu a mãe.
Ao entrar, ele apresentou:
— Pâmela, minha esposa.
Ela era uma mulher jovem, com o corpo bem delineado, e trajava um vestido curto e bem decotado. Kleber procurou esconder os efeitos do envelhecimento, tingindo os cabelos e vestindo-se de maneira a parecer mais jovem.
Rodolfo ficou confuso, mas só então entendeu que o encontro era mais uma maneira de Kleber se mostrar superior, pelo menos na cabeça dele. Todas as vezes que conversavam, ele mostrou ter um carro melhor, um emprego que lhe proporcionava altos rendimentos e prestígio e uma vida social intensa. Para Rodolfo, tudo isso era bobagem. Era feliz com sua loja, seu carro popular e sua família bem constituída. Não procurava esconder seus cabelos brancos e a barriga saliente.
Só então se deu conta de que o amigo, que sempre foi esnobe, entrou em uma fase de reafirmação. Era vazio e vivia de aparências. Não conseguia compreender as coisas simples da vida. Quando eram jovens, não perdiam nenhum jogo da Internacional, time da cidade, mas ao mencionar esse tempo a Kleber, Rodolfo teve a seguinte resposta:
— Isso é passado. Prefiro as novas arenas dos times grandes da capital. Vamos marcar um dia e eu te levo em um jogo desses.
O almoço transcorreu em um clima constrangedor, com Kleber, mais uma vez, ostentando suas conquistas, Pâmela soltando um sorriso forçado a cada declaração do marido e Rodolfo pensando nas filhas do amigo e em Helena, a ex-esposa.
Ao pedirem a conta, Pâmela se retirou e foi ao banheiro retocar a maquiagem. Nesse momento, Rodolfo perguntou sobre a ex-esposa e as filhas e se surpreendeu com o relato daquela pessoa que um dia fora seu amigo.
— Não dava mais para ficar com Helena. Ela envelheceu, enquanto eu ainda estou em boa forma. Estar com ela não fazia bem para a minha imagem. Não sentia nenhuma atração sexual por ela. Precisava de alguém que me proporcionasse uma vida mais intensa.
Rodolfo não concordou com o modo de pensar do amigo, mas não disse nada. Despediu-se do casal.
Rodolfo e Kleber continuaram se falando, esporadicamente, mas ambos perceberam que não tinham mais muita coisa em comum.

A origem do mundo, por Natania A S Nogueira
A origem do mundo: uma história da vagina ou
a vulva vs. o patriarcado
Para quem ainda acha que Histórias em Quadrinhos (HQ) são apenas para crianças, vai se espantar ao conhecer o trabalho da quadrinista sueca Liv Strömquist, que tem conquistado leitores e leitoras brasileiras nos últimos anos. Seu álbum de estreia no Brasil, publicado em 2018 pela Cia das Letras, é um dos mais traduzidos no mundo, “A origem do mundo: uma história da vagina ou a vulva vs. o patriarcado” (cujo título original é Kunskapens Frukt).
A HQ fala sobre as formas de dominação impostas pelo patriarcado e questiona muitos tabus acerca do corpo e da sexualidade feminina. Liv Strömquist faz uma crítica bem humorada de como as mulheres, em todas as faixas etárias, foram (e ainda são) oprimidas pela sociedade ao longo da história. Há na história em quadrinhos muito do ativismo da autora, que é declaradamente feminista. Mas, diferente do que acontece em outros países, ser feminista na Suécia é algo tão normal que o próprio governo se declarou o primeiro governo feminista do mundo.

A obra se divide em três partes. Na primeira, fala sobre como durante a história do ocidente a vulva e o órgão sexual feminino foi perseguido. Na segunda parte, trata da prática da masturbação feminina, os mitos e o discurso médico acerca dela, levantando questões que remetem aos obstáculos que as mulheres enfrentam ao reivindicar liberdade sobre o próprio corpo. Por fim, a autora reserva espaço para falar da menstruação e de como ela foi, ao longo da história, usada para oprimir as mulheres.
Strömquist é habilidosa ao tratar de temas polêmicos, sem cair nas armadilhas da vulgaridade. A autora possui um estilo próprio de narrativa, incluindo em seu texto obras sobre sociologia, filosofia e história, citando autores clássicos e contemporâneos, que são, inclusive, incluídos através de personagens. Liv Strömquist possui formação na área de Ciências Sociais e realizou uma rígida pesquisa para compor sua obra. Do ponto de vista artístico, ela utiliza ilustrações simples e da técnica da colagem, que se encaixam de forma harmoniosa.
A Cia das Letras publicou posteriormente mais dois álbuns da autora: “A Rosa mais vermelha desabrocha – o amor nos tempos do capitalismo tardio ou porque as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia” (2021); “Na sala dos espelhos – autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes & e outras encenações do eu” (2023); e quarto está em pré-venda para abril, “A astrologia” (2025). A autora, certamente, já possui um público cativo no Brasil, o que atesta a qualidade da sua obra.
“A origem do mundo: uma história da vagina ou a vulva vs. o patriarcado” nos faz refletir. A reflexão é o primeiro passo para que possamos construir uma sociedade menos desigual, pelo menos nas relações de gênero. E quem diria, tudo isso numa história em quadrinhos. Embora esta HQ tenha sido concebida preferencialmente para o público feminino, ela é indicada para todas as pessoas. Meninos e meninas, homens e mulheres, devem poder conhecer esta parte da história, que não se aprende na escola. Conhecimento sempre foi e sempre será a melhor arma contra o preconceito e a intolerância e é, também, uma forma de se combater o sexismo e a violência que, infelizmente, ainda assola a todos nós.

Livros Indicados
Nesta edição dedicada à Sétima Arte, nossos livros recomendados seguem uma linha diferente: são dicas para quem quiser conhecer um pouco mais sobre fotografia, história da arte e cinema. Que tal um desses na estante?


Eu sei por que o pássaro canta na gaiola
Autora: Maya Angelou
RACISMO. ABUSO. LIBERTAÇÃO. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo que foi aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto através das palavras. Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para exibir sua voz e libertar-se das grades que foram colocadas em sua vida. As lembranças dolorosas e as descobertas de Angelou estão contidas e eternizadas nas páginas desta obra densa e necessária, dando voz aos jovens que um dia foram, assim como ela, fadados a uma vida dura e cheia de preconceitos. Com uma escrita poética e poderosa, a obra toca, emociona e transforma profundamente o espírito e o pensamento de quem a lê. Saiba mais…

O que resta de nós
Autora: Virginie Grimaldi
Jeanne perdeu o grande amor de sua vida. Aos 74 anos, precisa encarar uma viuvez dolorida. De repente, viu-se sozinha no apartamento com quem compartilhou décadas de um casamento feliz, só ela e Pierre.
Em suas visitas diárias ao túmulo do marido, ela compartilha sua solidão e seus medos, inclusive o de não conseguir pagar todas as contas sem o salário dele. Para resolver o problema, ela toma uma decisão impulsiva: alugar um dos quartos do apartamento. Mal sai pelo bairro distribuindo folhetos de divulgação e já consegue dois candidatos: Théo, aprendiz de confeiteiro da padaria ali perto, e Iris, uma jovem cuidadora de idosos e doentes.
Théo está ansioso por ter um lugar decente para morar. O carro dentro do qual vivia foi rebocado com todos os seus pertences, e o custo de recuperá-lo é mais alto do que ele pode bancar. Alugar um quarto próximo ao trabalho é a opção perfeita. Iris também está desesperada. Sem aviso prévio, o locatário do apartamento em que morava pediu o imóvel de volta, e ela tem poucos dias para achar um novo teto. Pior: precisa ser o mais discreta possível, para que uma pessoa do seu passado não a encontre.
Jeanne segue sua intuição, desocupa o terceiro quarto do apartamento e recebe Théo e Iris para morarem com ela. A princípio indiferentes uns aos outros, a convivência vai despertando sentimentos inesperados, e assim a solidão dos três pouco a pouco transforma completamente a vida de cada um. Saiba mais…



Delírio
Autora: Laura Restrepo
É possível manter-se são num lugar insano? Delírio é uma resposta atualizada a essa questão, que já ocupou e preocupou autores como Sófocles em Édipo Rei, Shakespeare em Hamlet, Kafka em O processo, Sartre em A náusea.
Um homem volta de uma curta viagem de negócios e encontra a mulher fora de casa e longe de seu juízo perfeito. Sem saber o que aconteceu durante sua ausência e na tentativa de tirá-la da crise, ele começa uma investigação que revelará a vida privilegiada, mas problemática, da mulher, imbricando várias histórias, como a de um antigo amante envolvido com o megatraficante Pablo Escobar, a de um avô alemão marcado pela tragédia e a de uma infância vivida entre a riqueza, o poder e a dor.
Vencedor do prêmio Alfaguara de melhor romance, Delírio é multifacetado. E uma de suas faces é a dura realidade atual da Colômbia, que vive uma das mais complexas situações do mundo contemporâneo. Saiba mais…


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Corpo Editorial

Editora
Daiane Carrasco
Oceanóloga. Escritora.
Instagram: @daiane_carrasco
Autora do Livro Ozzy & Jonny.

Designer e Criação
Sérgio Fernandes
Consultor de T.I. & Terapeuta Corporal.
Instagram: @sehfernandes
Site: sehfernades.com.br
Autor do Livro Zé das Campas.


Escritores da Edição nº 20 de 2025 – O etarismo


Paulo Câncio
Escritor & Pianista
Instagram: @paulocanciodesouza
Autor dos Livros Trajetória de Aventureiro
& Momentos da Vida (Direto com Autor)



Igor Pires Leon
Escritor
Graduado em História e Pós-Graduado em Cinema, é autor das seguintes obras:
Veludo Azul contos, pela Editora Nauta; As incoerências e insatisfações de um casal desapaixonado; O caso da mulher desaparecida; O toque do despertador pelo Clube de Autores.
editoranauta.com.br
clubedeautores.com.br
Instagram: @igorpiresleonescritor



Fernanda da Fonseca Pereira
Assistente Social com mestrado e doutorado em Política Social e Direitos Humanos.
trabalho com as comunidades da Zona Oeste do Município do Rio Grande, experiência que provocou a escrita do livro “Reincidência da Violência Contra Meninas e Mulheres Pobres do Município do Rio Grande/RS”. Desde 2014, escrevo no meu blog “Mulher Inteira” dando vida ao desejo pela escrita e reflexão política sobre o mundo, em que (sobre) vivemos. Enfim, sou mulher vinda da periferia, criança crescida em situação de violência, mãe atípica, Sacerdotisa de Umbanda e Mulher de luta e esperança.
Instagram: @fernandadafonsecapereira
Blog: mulherinteira.blogspot.com

Christiane Andréa
Sexóloga, Mestre em Educação
Ativista na temática da autoproteção e prevenção das violências contra crianças e adolescentes.
Escritora de literatura Infantojuvenil e Educadora em Sexualidade, é autora do primeiro livro nacional a atender a Lei 14. 164 de 2021 sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica, e institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.
Atualmente é Coordenadora da Comissão de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil de Santos.
Livros Publicados:
Vamos Conversar? Sobre Violência Sexual Infantil, Vamos Conversar Mamãe? (e-book), Por Todas as Flores do Mundo – Uma Oficina Poética de Prevenção Para Meninas.
www.papaleseditorial.com.br/christiane-andrea
Instagram: @christianeandreaoficial



Fernando Buzzetto
Formado em Administração. Leciona no Ensino Superior e Escritor
Instagram: @escritor.buzzetto

Natania A S Nogueira
Professora, Historiadora e pesquisadora de HQs
Instagram: @nogueiranataniaas
Site: natanianogueira.academia.edu
historiadoensino.blogspot.com
Ebook para baixar: 2024 HQs Interdisciplinaridade Desafios Metodológicos

