Edição 17 – Chico Buarque – Dezembro 2024

Edição 17 – Chico Buarque – Dezembro 2024

Introdução | Resenha do livro: Budapeste | Filme: O que é isso, companheiro? | Deus lhe pague | Olhos nos olhos | Paratodos | História de uma gata | A Banda | Poesia Cansada | Geni e o Zepelim | Turbilhão | O samba, a viola, a roseira | Livros Indicados | Corpo Editorial | Escritores da Edição

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Em 19 de junho de 2024, Chico Buarque completou 80 anos! O Literato Dente-de-leão não poderia deixar passar em branco e se despede deste ano com uma homenagem ao nosso compositor maior. Recentemente, em uma entrevista concedida à Globo News, por ocasião de ter sido agraciado com o Prêmio Luís de Camões, maior honraria da Língua Portuguesa, em 2023 (o prêmio foi anunciado em 2019, mas só foi entregue quatro anos depois), Chico divertia-se com os comentários que leu a seu respeito na internet. Em um deles, uma jovem perguntava: “Mas quem é este velho?” Bem-humorado, ria-se, repetindo a pergunta: “Justamente, quem é este velho?”

Para saber “quem é este velho”, uma busca rápida resolve. O currículo extenso de Chico é notável: compositor, intérprete, dramaturgo, ensaísta, romancista. Nossa missão aqui, nesta modesta edição, não é “quem é” e sim “por que este velho?”.

Ao longo destas páginas, nossos escritores criaram seus textos a partir das canções do memorável Francisco Buarque de Holanda. Também disponibilizamos uma playlist com as músicas-tema da edição. Tentamos aproximar o leitor da subjetividade e genialidade de suas composições. Talvez você(s) nunca tenha(m) escutado qualquer uma delas no rádio, mas nunca é tarde para se encantar por um velho revolucionário.

Boa leitura a todos!

Aproveite a Playlist das músicas de Chico Buarque que escolhemos para nossa edição.

Resenha do livro: Budapeste, de Chico Buarque, por Daiane Carrasco

O livro tem algumas peculiaridades, como o narrador em primeira pessoa, José Costa, um ghostwriter, ou, como ele mesmo se intitula, um “escritor anônimo”, que trabalha numa agência que cria textos para que outros autores os assinem, e o discurso indireto ao longo de toda a narrativa. Confesso que eu, amante dos dois pontos e travessão para a marcação dos diálogos, fórmula clássica dos discursos diretos, estranhei a estrutura do texto. Mas, ao longo dos capítulos, as divagações do protagonista vão conduzindo a leitura como um fio condutor entre o Rio de Janeiro e Budapeste.

José Costa vive dividido entre sua vida no Rio de Janeiro, com a esposa Vanda, uma jornalista que trabalha em um telejornal, seu filho, Joaquinzinho, menino obeso, e suas incursões a Budapeste, onde tenta aprender o húngaro com uma local. Kriska é sua professora e acaba se tornando sua amante. À primeira vista, pode parecer apenas mais um romance sobre um homem branco, classe média, que vive um caso extraconjugal, como tantos e tantos por aí. Mas não. O brilhantismo de Chico Buarque como romancista reside justamente na construção do enredo, como neste trecho:

“Porque logo no início do casamento, ainda modesto escritor, fui para ela sem dúvida um marido admirável. Mas à medida que aprimorava minha literatura, naturalmente comecei a me relaxar no trato com a Vanda. De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam boas palavras para ela.”

E neste outro:

“Com uma só palavra Kriska me cobriria de vergonha, me aleijaria, me faria andar torto de arrependimento pelo resto da vida. A palavra estava ali nos seus lábios vacilantes, devia ser uma palavra que ela nunca se atrevera a pronunciar. (…) Então não me contive e supliquei: fala! Kriska não falou. Expirou todo o ar que tinha, balançou a cabeça, voltou para a cama, se cobriu, se virou para o lado e apagou a luz.”

É a grande metáfora dos relacionamentos: nos distanciamos de nossos parceiros quando não falamos mais a mesma linguagem. Chico utiliza a palavra, o aprendizado de um novo idioma, para traduzir a dinâmica das relações interpessoais do protagonista.

Não precisamos absolver José Costa das suas idiossincrasias: ele é adúltero e não dá importância para o filho. No entanto, temos um homem inteiro, completo, um amante da linguagem, que à medida que mergulha no complexo idioma húngaro e na sombria Budapeste, com seus becos e hotéis baratos, vai se distanciando do vibrante e caótico Rio de Janeiro.

É um livro humano, delicado e genial. Porém, um aviso: não é para ser lido rapidamente. É preciso ler, reler, prestar atenção, justamente para compreender a subjetividade contida no enredo. Talvez o estratagema do romance resida na necessidade de obras que desafiem o óbvio. Num mundo cada vez mais digitalizado e em livros ditos “de entretenimento”, as novas gerações se cansam de ler e interpretar. Mas Chico reverbera o que disse Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe.”

Budapeste
Autor: Chico Buarque

Ao concluir a autobiografia romanceada O ginógrafo, a pedido de um bizarro executivo alemão que fez carreira no Rio de Janeiro, José Costa, um ghost-writer de talento fora do comum, se vê diante de um impasse criativo e existencial. Escriba exímio, “gênio”, nas palavras do sócio, que o explora na “agência cultural” que dividem em Copacabana, Costa, meio sem querer, de mera escrita sob encomenda passa a praticar “alta literatura”. Também meio sem querer, vai parar em Budapeste, onde buscará a redenção no idioma húngaro, “segundo as más línguas, a única língua que o diabo respeita”. Narrado em primeira pessoa, combinando alta densidade narrativa com um senso de humor muito particular, Budapeste é a história de um homem exaurido por seu próprio talento, que se vê emparedado entre duas cidades, duas mulheres, dois livros, duas línguas e uma série de outros pares simétricos que conferem ao texto o caráter de espelhamento que permeia todo o romance, e que levaram o professor José Miguel Wisnik a afirmar que se trata de “um romance do duplo”. Tenso e à vontade, cultivado e coloquial, belo e grotesco, Budapeste traz a perfeição narrativa de Estorvo e Benjamim e confirma Chico Buarque como um dos grandes romancistas brasileiros da atualidade. O romance ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de 2003 e o IV Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, em 2005. Saiba mais…

O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto, por Samuel Ferreira

A Ditadura Militar nunca foi revista ou rediscutida de forma ampla, profunda e séria pelo Estado brasileiro, e essa etapa trágica da história de nossa sociedade se demonstra vez ou outra como uma das grandes fragilidades de nossa jovem democracia, que se apoia em uma Constituição que está sempre sob ataque dos “filhotes da ditadura”, como dizia Leonel Brizola (1922 – 2004). Se por um lado, como Estado não conseguimos enfrentar a Ditadura Militar de frente, ou como deveríamos, como fizeram nossos hermanos argentinos e chilenos, ao punir os militares e patrocinadores daqueles que violentaram a sociedade, a literatura, o cinema e outras expressões artísticas e culturais, demonstramos a capacidade de propor uma denúncia, e dessa maneira, rememorar para que “nunca mais aconteça, mas que nunca mais se esqueça”.

O filme do diretor Bruno Barreto “O que é isso, companheiro?”, de 1997, propõe uma exposição profunda deste duríssimo período ditatorial (de 1964 até 1985), baseado na narrativa de Fernando (que se tornou Paulo em prol da militância política), que opta por integrar um movimento político revolucionário chamado Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8. O filme possui o livro homônimo, de autoria de Fernando Gabeira e publicado em 1979. O Fernando, de onde emana a narrativa principal do livro e do filme, é Fernando Gabeira, militante político, jornalista e escritor. Fernando que foi rebatizado, por questões óbvias, como Paulo.  Além deste fato, Gabeira era um dos militantes que foi solto na troca do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (1909 – 1988), no sequestro realizado em 1970, organizado pela Ação Libertadora Nacional (ALN) e pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Bruno Barreto nos apresenta uma obra cinematográfica importantíssima para a dita “retomada política do cinema brasileiro”, e nele nos apresenta o histórico sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (1908 – 1983) pelo MR-8 em 1969. O sequestro foi histórico porque o grupo político reivindicou a leitura de uma carta-manifesto em mídia nacional (o que foi feito, manifestando os reais interesses políticos do movimento e algumas denúncias) e a libertação de 15 presos políticos que estavam sob prisão e tortura pelos militares (dentre eles, o ex-ministro José Dirceu). Entendendo a real seriedade da força política do MR-8, os militares acataram as exigências dos revolucionários, sendo que os prisioneiros políticos brasileiros foram exilados no México. O embaixador Charles Elbrick, foi solto 78 horas depois do seu sequestro.

O longa-metragem de Barreto trata de questões importantíssimas como a transformação dos grupos revolucionários passivos em grupos revolucionários armados, tendo em vista o crescimento da repressão e da violência por parte dos militares na ditadura. Denuncia esse “vanguardismo” político dos movimentos sociais e políticos no Brasil, que intensificaram a luta em favor da democracia. Cabe um destaque também para a separação e divergência entre movimentos e militantes pela opção da luta armada, a importância das lideranças femininas nas organizações de esquerda e a pressão que as organizações políticas conseguiram realizar em cima dos ditadores, através dos sequestros organizados. Fatos que foram imprescindíveis para a volta da democracia e para a reverberação, em nível nacional e internacional, da violenta repressão ditatorial em que o povo latino-americano e brasileiro se encontrava.

O que é isso, companheiro? (1997)

Direção: Bruno Barreto – Roteiro: Leopoldo Serran

Elenco: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso O jornalista Fernando (Pedro Cardoso) e seu amigo César (Selton Mello) abraçam a luta armada contra a ditadura militar no final da década de 60. Os dois se alistam num grupo guerrilheiro de esquerda. Em uma das ações do grupo militante, César é ferido e capturado pelos militares. Fernando então planeja o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick (Alan Arkin), para negociar a liberdade de César e de outros companheiros presos. Saiba mais… (AdoroCinema)

Deus lhe pague, por Fernanda da Fonseca Pereira

Deus lhe pague, Chico! Deus lhe pague por não calar, por cantar, por levantar a voz! Deus lhe pague e não apague a nossa história. Deus lhe pague, Carlos Marighella[1], por traduzir esperança e armar muitos na luta pela democracia revolucionária. Mas tudo, tudo, terminou em pau de arara. Pau de arara, boca calada, tortura legitimada, desigualdade social aumentada! Industrialização acelerada, urbanização enfatizada, paradoxalmente aliada ao trabalho em condições precárias de segurança, expropriação violenta de povos tradicionais de seus territórios, justiça social abandonada!

Deus lhe pague! Vimos nossos movimentos sociais acreditarem, lutarem! E apesar do Ato Institucional N.5[2] ter causado gritos dementes, louvores, choro e ranger de dentes, o autoritarismo foi desafiado por greves, associações, reuniões, passeatas, muitas delas organizadas pelo Movimento Estudantil, Movimento Operário e Ligas Camponesas. Deus lhe pague, pois a repressão não fez calar, mas aparecer, urgir, o grito contra o desenvolvimento dependente e excludente.

Fomos sequestrados na nossa dignidade humana, na nossa expressão e reflexão, assaltados pelo autoritarismo, corroídos pelos Atos Institucionais e nos equivocamos. Encontramo-nos com a violência em todas as suas formas, nos iludimos e confundimos táticas. O ódio foi estratégia de revolução, Deus lhe pague, entramos em convulsão! Crimes para comentar e festas para silenciar. Deus lhe pague!

Deus lhe pague! Nosso povo amargou, amarga e amargará na alienação da riqueza produzida no nosso País. Deus lhe pague, a mais valia não será questionada. Deus lhe pague, são horas e horas trabalhadas, sem carteira assinada.

Deus lhe pague pela dor social, pelo endividamento externo do País, pela especulação rentista, pela mão-de-obra barata, pela concentração de renda e pela exclusão do capital.  Deus lhe pague pela alienação das riquezas nacionais, pelos crimes ambientais!

Deus lhe pague pela oração! Ela não veio na contramão, fez agradecer o pão. Fez acreditar no prazer de viver, nos gestos ternos, nas mãos desarmadas, nas pessoas amadas. Fez levantar líderes religiosos, jovens, camponeses, sindicalistas, ambientalistas. Prática amorosa pelo fim da dominação e opressão. Plantaram-se sementes de resistência.

Reunimos cacos, restauramos nossos laços, construímos, mesmo em pedaços. Hoje queremos um país sem segregação, gente sem distinção, sem fome, sem agressão. A todos os Movimentos de luta contra a opressão, Deus lhe pague pela “paz derradeira”, pela fé verdadeira, pela esperança na revolução! Deus lhe pague por não calar! Deus lhe pague por esperançar!

Marielle Franco, presente! Dom Philips e Bruno Pereira, presente! Chico Mendes, presente! Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), presente! Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MSTS), presente! Deus lhe pague! Democracia sem distinção!


[1] Carlos Marighella, nascido em 5 de dezembro de 1911, em Salvador, e assassinado em 4 de novembro de 1969, numa emboscada em São Paulo. Foi um dos principais integrantes da organização, de caráter revolucionário, Ação Libertadora Nacional (ALN) e atuou na luta armada contra a ditadura militar brasileira. Foi político, escritor e guerrilheiro. Carlos Marighella se tornou símbolo de resistência contra o autoritarismo imposto pela Ditadura Militar.

[2] O Ato Institucional nº 5, foi instituído no dia 13 de dezembro de 1968, no governo de Arthur da Costa e Silva. O AI-5 permitiu a cassação de políticos eleitos nas esferas federal, estadual e municipal e autorizou o presidente da República a intervir nos governos estaduais e municipais bem como a suspender direitos e garantias constitucionais. Por fim, representou o momento de maior repressão contra os opositores da Ditadura Militar, no Brasil.

Olhos nos olhos, por Stéfani Quevedo

Quando escolhi escrever sobre o tópico acerca da música “Olhos nos Olhos” do grande Chico Buarque, senti um frio na espinha instantâneo, sabia seria um desafio, mas também encarei como algo instintivo e me deixei seduzir pela letra dessa tão bela canção! Ela aparece no álbum “Meus Caros Amigos”, de 1976. Esteve nas trilhas das novelas “Vidas Opostas” (2006/2007 – Miucha e Tom Jobim), “Duas Vidas” (1976 – Agnaldo Timóteo). O escritor Mia Couto em “Dez contos para canções de Chico Buarque”, produziu um incrível texto intitulado “Olhos Nus”.

Ao interpretar a canção tive a impressão de que, apesar do sofrimento do eu-lírico feminino, pela separação de uma relação desgastada, sobre uma mulher que se perdia paulatinamente, pude notar que ela ainda tinha esperanças de reatar. Há que se considerar a época da composição. Já que o retrato musical advinha de uma década em que diversas mulheres pouco questionavam seus relacionamentos, pensei: “Como poderia ser essa história retratada na música, vivenciada e contada por uma mulher mais de 40 anos depois?” Então desejei possibilitar um desfecho um pouco diferente.  Ademais, quero aqui salientar: uma mulher pode, enfim, se olhar no espelho e se enxergar, sabendo que não depende de ninguém para ser feliz.

Segue uma crônica que traduz modestamente uma releitura, ainda com toda reverência à grande obra de Chico.

Passado em Verde Musgo

Abri os olhos, vagarosamente. Naquela manhã, estavam inchados pelas lágrimas que me fizeram companhia na noite anterior. Ao ajeitar os cabelos desgrenhados, coloquei um dos pés no chão e, naquele momento, jurei a mim mesma, não mais! Mirei minha face no espelho analisando as linhas de expressão que a contornavam como se fossem as digitais da solidão a dois. Ao observar a cama, estava por lá sua camisa latente, como toda a sua tralha que ainda martelava em minha lembrança.

— Não há mais “nós”. Na verdade nunca houve, não é mesmo, Otávio?

— Entenda, minha doce Alice, não se trata de você, mas de mim mesmo. Não queria magoar você, mas aquela mulher, você sabe, fui me deixando levar por seus encantos, jovialidade, sou homem, afinal…

Em tamanho desespero quis agarrar suas pernas e implorar que me amasse um pouco mais. Não consegui sentir ódio, mas um profundo luto. No fundo, eu mesma sabia que sua partida significaria abdicar de algo que já se encontrava em minhas entranhas, seria como amputar um membro, uma vez que fiz da vida dele, a minha. Dediquei a mais bela juventude a ele, ofertei o que havia de melhor em mim. No entanto, fui me perdendo, renunciava às minhas preferências, tudo acontecia conforme a vontade dele: a decoração da casa, a comida, o ritmo da cama, quando era notada, minhas roupas, meu comportamento. Até que, em um momento, realmente desapareci, no verde musgo do papel de parede da sala, que ele fez tanta questão de escolher.

Ele fitou profundamente meus olhos, com uma expressão de pena. Nenhuma lágrima serpenteou sua face, não houve voz embargada. Nos meus olhos, chovia. Uma tempestade desabava minhas expectativas e o suposto relacionamento que lutava para manter. Após um silêncio frio e cortante pronunciou-se.

— Amanhã peço para um funcionário pegar minhas coisas, no início da tarde. Por favor, organize tudo para mim. Preciso ir, ela está me esperando lá embaixo. Alice, fique bem!

Consegui responder apenas com o silêncio. Ele pegou a mala de mão e foi em direção à porta, sem hesitar, nem mesmo olhou pra trás. Ouvi até o último ranger daquela engrenagem que se movia, ali, na minha frente. Então, virei-me de costas para ela, deslizei meu corpo por essa porta fúnebre de madeira, sentei-me no chão, chorando feito criança. As lágrimas corriam pela perda de mim mesma. Naquela noite, como estava sendo comum nos últimos meses, dormi embalada pelo choro, agarrada à sua camisa. Mas naquela manhã, até o gosto na boca era diferente. Respirar fundo até que nem doía. Coloquei um vestido que ele odiava, deixei os cabelos soltos, calcei os chinelos, peguei a carteira e fui à uma padaria. Ali não pedi café.  Deleitei uma refeição despretensiosa, um chocolate-quente e um pão na chapa, algo tão trivial para muitos e imensamente único para mim.

Fui ao salão e pedi um corte de cabelo curto, que ele achava pouco feminino. Encarei o espelho e vi uma mulher tão linda, única, mais bela que quaisquer protagonistas de contos de fadas. Que enxergava coragem nos olhos! Fui ao cinema assistir a um romance água com açúcar, daqueles que ele jamais aceitaria assistir e que não havia visto, pois temia por encarar as pessoas estando sozinha. Visitei livrarias, imergi nas profundezas de uma boa trama literária, daquelas que me fariam queimar o arroz por tamanha distração. Então virei a página, arranquei com veemência o papel de parede verde musgo da sala, como quem deseja tirar um curativo, rápido e indolor. Aceitei uma proposta de emprego, que recusara, uma vez que ele sempre preferia que eu estivesse em casa, cuidando do lar e dele.

Aos poucos fui redecorando o apartamento. Vendi alguns pertences que a mim nunca pertenceram e com esse dinheiro viajei, ah, como viajei! Conheci pessoas, lugares, culturas que abriram a minha visão e me fizeram pensar sobre o quanto ainda havia de desconhecido, incluindo possíveis amores inimagináveis para a antiga Alice. Às vezes, a lembrança dele vinha, então pensava… E se ele voltar? Otávio precisa saber o quanto estou feliz, mudada! Mas, na verdade, não queria estar, queria ser feliz de fato e sabia que ele não poderia mais fazer parte desse estado permanente. Se alguém me perguntasse se, de fato, fui feliz com ele, hesitaria em responder. Agora percebo que não posso colocar minhas expectativas de felicidade em outra pessoa. Então, olhos nos olhos, frente ao espelho, vi que nada dele havia ficado em mim. Abraçava-me e fitei o corpo que ele criticava, com suas curvas, cada um de seus sinais esculpidos pelo tempo e tive orgulho! Cuidei dessa casa onde moro, não com vassouras e rodos, mas com a compreensão de quem fui e de quem posso ser.

Paratodos, por Karine Souza e Pousas

Assim como em uma boa alegoria, a música de qualidade nos traz uma imagem nítida como um quadro e, ao mesmo tempo, tece tramas e multiplicidades, que nos permite enxergar além do enredo. Paratodos, canção composta e interpretada por Chico Buarque, é uma dessas preciosidades.

Chico começa a letra apresentando sua linhagem, sua ancestralidade brasileira, reconhecendo a origem multiétnica de sua família. Nascido no Rio de Janeiro, ele realmente teve pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano e além de muitos nomes, reforçou algo importante ao povo brasileiro.

Contrapondo a tendência colonialista de reconhecer os ancestrais de origem estrangeira, a canção aponta para aqueles que nasceram em terras tupiniquins, enfatizando o orgulho pelas raízes brasileiras. Não significa que Chico depreciou seus ancestrais imigrantes, ele apenas pôs uma lupa sobre os migrantes itinerantes, desenhando o deslocamento entre gerações que acontece dentro de nosso país.

Se a canção é para todos, então não faria sentido se ater apenas à família de sangue. Assim, Chico também desenvolve uma ode à sua família de harmonia, ritmo e melodia. A lista de companheiros de Chico, além de inspirações, se desdobra em cada verso, oferecendo destaque àquele que é considerado pelo próprio músico como seu maestro soberano: Tom Jobim.

Neste ângulo, vemos uma valorização dos grandes artistas de nosso país, da nossa cultura. Na lista, temos uma seleção que vai ser responsável por inspirar e contribuir para o desenvolvimento da MPB — Música Popular Brasileira.

Paratodos foi lançada em álbum homônimo em 1993, época em que a valorização da cultura norte-americana seguia de forma muito intensa no Brasil. Dessa forma, o bom e velho Chico nos apresentou um contraponto, da mesma forma como ele fez ao longo de toda sua carreira. Com a capacidade de tecer críticas fortes e abordar temas polêmicos de forma leve, poética e dialógica, essa música permite a troca, a reflexão e a desconstrução das próprias certezas.

É um convite para todos nós enxergarmos nossas origens, reconhecermos as diversas narrativas que construíram o país, como nossa música, nossa arte – a expressão mais sublime do que somos capazes de criar neste mundo.

História de uma gata, por Sérgio Fernandes

“Nós, gatos, já nascemos pobres. Porém, já nascemos livres…” Até hoje quando escuto, ou simplesmente leio as palavras acima, vislumbro na minha mente um tempo muito bom de minha infância.

A música “História de uma gata”, parte do musical infantil “Os Saltimbancos” era muito mais do que só um musical! Era diversão garantida na vila onde eu morava, pelo menos para as crianças. As mães e pais meio que eram obrigados a assistir nosso teatro (risos).

Dia começando e sem escola, a campainha tocava, saía correndo, sabendo que um de meus amiguinhos estaria pronto para novas aventuras.

— Oi! O que vamos fazer hoje? Taco, andar de bicicleta, esconde-esconde, queimada?

De repente, minha amiga com as mãos nas costas revela um boné e duas meias pretas e os sacode no ar.

— Oba! Teatro…

— Isso mesmo. — Disse ela já começando a cantar e abraçados fomos bater de porta em porta para reunir o elenco.

“Nós, gatos, já nascemos pobres. Porém, já nascemos livres…”

Em meia hora, todos os artistas reunidos no fundo da vila, e já planejando todos os detalhes: quem vai ser que personagem, o que precisamos para os figurinos, onde será o palco?

Mais algum tempo de reunião e debandada geral, cada um para sua casa revirar o armário atrás de tudo que pode ser usado por qualquer artista do grupo, conseguir o “paitrocínio” da casa para o local da apresentação. Reencontro na nossa sala de reunião ao ar livre, cada um vinha chegando com uma mochila, com uma trouxa, ou carregando tudo na mão. Colocávamos tudo em um canto e dois de nós já começavam a dividir as roupas para vestir cada um dos bichinhos, normalmente as meninas. Outros dois se encarregavam de fabricar os convites à mão e, claro, entregá-los, com data e hora do espetáculo.

Tudo marcado, convidados com o RSVP em 100%. Próxima etapa: ensaiar toda a peça, mas onde? Ali mesmo. Alguém pegava a vitrolinha laranja e o LP, puxávamos uma extensão da casa mais próxima e som na caixa! Palpite daqui, palpite dali e em algumas horas peça construída, ensaiada e pronta para a estreia na Broadway.

Agora todo o elenco foi se alimentar, tomar banho, se perfumar. Marcávamos uma hora e meia antes para preparar o local da plateia, o cenário e tudo mais! Queríamos estar perfeitos para a nossa performance que concorria ao Tony Award[1]! Coitados dos “paitrocinadores”.

Casa cheia, corações em saltos, e lá vem a música…

Me alimentaram
Me acariciaram
Me aliciaram
Me acostumaram
O meu mundo era o apartamento
Detefon, almofada e trato
Todo dia filé-mignon
Ou mesmo um bom filé de gato

Como foi tudo muito bem ensaiado, o frio na barriga durava somente os minutos iniciais, as improvisações e a confiança de trabalharmos com atores companheiros ajudava. Em “um minuto”, pelo menos para nós, os bichinhos da peça, tudo fluía e ao final tínhamos o gosto de ver todos os espectadores sorrindo e aplaudindo.

Gosto de infância, na mente tudo ainda passa como um filme bem colorido, como se tivesse sido gravado em 4K e não em VHS corroído pelo tempo, reavivado escutando essa melodia ou uma parte dela!

Chico Buarque e Edu Lobo compuseram essa canção muito divertida e ao mesmo tempo profunda: a mensagem da “Gata” que abandona a segurança para ser livre, enfrentando os perigos e obstáculos de vida. Em suma, rejeitando as imposições sociais para viver livremente.

As habilidades desses compositores são inquestionáveis, levam os adultos a uma introspecção mesmo nessa música infantil, escrita em 1977, inspirada no conto “Os Músicos de Bremen” dos Irmãos Grimm. E parece tão atual…


[1] Tony Award – Premiação concedida às melhores produções da Broadway em cada ano.

A Banda, por Daiane Carrasco

Inspecionar, instruir e dirigir. – Era o lema escrito em letras garrafais na parede da sala dos inspetores escolares. Na minha escola, no turno matutino em que eu estudava, tínhamos um – o Anselmo.

Anselmo nada mais era do que um simples operário, pago para manter a ordem no colégio de padre, frequentado por filhos de madame. Ladrava como um cão raivoso a qualquer subversão da ordem. As salas de aula tinham um púlpito, onde ficava o professor. Cada porta tinha uma janelinha. Ele passava a ronda. Se houvesse mistura entre os alunos e o mestre, pronto! Lá estava a interrogar, inquirir e dedurar.

Certa vez, antes das férias de inverno, fazíamos uma batucada. Era a momentânea alforria de um catatau de provas e deveres. Cantávamos. Éramos uma primitiva orquestra de desafinados.

— Dispersando! Dispersando! – Apareceu gritando, batendo palmas, como quem espanta galinhas em um terreiro.

— Por quê? O que há de errado, Anselmo? É o último dia de aula! Por que a alegria tem de ser triste? – Perguntei indignada. Nos meus parcos 14 anos, não compreendia.

— Porque é assim que tem que ser! Nada de algazarra ou cantoria! – E assim percorremos o trajeto do pátio até o final do corredor e o portão, em silêncio.

Meus amigos julgavam ser pura caretice. Meus pais, que ele era um excelente funcionário, preocupado com a ordem e o progresso. Eu não tinha uma opinião formada, mas os anos foram passando. Conforme eu crescia, observava e juntava elementos que me dessem pistas sobre o que acontecia não só na escola, mas no nebuloso universo em que eu vivia, imerso em “nãos”.

As aulas de educação física eram exaustivas. Corríamos, fazíamos ginástica, marchávamos perto do Sete de Setembro. Um dia, chovia muito e ficamos dentro do ginásio. Suávamos de tantos polichinelos. O professor sugeriu uma pausa. Um dos meus colegas trouxera um radinho de pilha escondido na mochila. Sintonizou numa rádio e foi uma festa! Dançávamos na quadra. Pensei que Anselmo apareceria rosnando, mas não. Ele mirava a todos nós com uma prancheta em mãos, com um olhar de censor. Vilson, o mais extrovertido da turma, rebolava, exibia-se, parecia provocar o inspetor. Provocação esta que surtiu efeito.

— Endurece essa cintura, moleque!

— O que há de errado com o quadril mole? – Desafiava Vilson. O professor tentava interferir, fazendo sinal para que o menino simplesmente virasse as costas e deixasse a quadra.

— Quadril mole é coisa de veado.

— E o que uma coisa tem a ver com a outra? – Silenciamos. O silêncio era sepulcral. Nunca retrucávamos o Anselmo com mais de uma rodada de perguntas.

— Quem rebola demais é porque dá a bunda. – Falava com sarcasmo. Anotava na prancheta as violações e subversões de Vilson. Porém, com as mensalidades em dia e com um sobrenome mais comprido do que esperança de pobre, dificilmente o moleque seria entregue às autoridades ou punido.

— Você sabe por que já deu a sua? – Foi a única vez que vi Anselmo fraquejar. Ele ficou pálido, sem reação. Encolheu-se. Era a deflagração de um delito, na época, um crime. Quase uma confissão de culpa. Um a um saíamos incrédulos da quadra, chocados com o desfecho inesperado.

Passaram-se os dias. Os meses. Mais um ano. O episódio do ginásio não o amoleceu, muito pelo contrário: Anselmo tornara-se ainda mais repressor. Controlava até mesmo o tempo em que ficávamos a sorver a água com a boca nos bebedouros. Mas eu terminara minha formação naquela escola. O suplício havia acabado.

— Anselmo, eu vim me despedir.

— Sucesso, menina Odete.

— Obrigada! Trouxe um presente pra você. – Olhava-me surpreso, pois sabia que não ganhava o afeto dos alunos com seus gritos, xingamentos e reclamações. – Por favor, só abra depois que eu for embora.

Fez um gesto afirmativo com a cabeça e me agradeceu. Afastei-me devagarinho. Ouvi quando abria o embrulho. Era um LP do Chico Buarque. Pensei que fosse jogar fora, mas o pôs a tocar na vitrola. Eu escutava o som das faixas ao longe. Observei-o da rua, pela janela.

Enquanto a banda passava, cantando coisas de amor, Anselmo chorava. Queria comungar de uma benesse que lhe era proibida. Eu me libertava, deixando-o cativo, o cão fiel e mal alimentado. A repressão assustava, mas o povo, a juventude, a arte, eram maiores. Sua fé no sistema era tão inútil como uma faca cega. E a banda adentrava-lhe os ouvidos, cortava-lhe a alma, como faca amolada.

Poesia Cansada, por Rita Perez Germano

Todo dia nasce igual, mas chega como quem já esteve aqui antes.

Seis horas, e ela vem. Não é o despertador que me acorda, é aquela sacudida leve que parece dizer: o mundo espera lá fora. A boca é macia e tem gosto de hortelã e o beijo, ainda com cheiro de travesseiro, é breve. Um “bom dia” delicado antes de o dia começar de verdade.

Enquanto o café desce quente, eu penso em parar. Parar de correr atrás do tempo, parar de seguir essa trilha delineada que eu já sei de cor – quase que uma sinfonia de passos apressados. Mas não digo nada. O gosto amargo do café mistura-se ao silêncio, e eu engulo os minutos como se fossem obrigatórios.

Ao meio-dia, o sol bate forte, mas eu estou lá, mastigando feijão e engolindo vontades. A vontade de dizer não, de escapar, de largar a mesa e andar sem rumo, de criar novas narrativas – quem sabe? Mas eu fico. O prato esvazia e, junto com ele, o que sobrou do meu ímpeto, do meu desejo, do meu furor.

Às seis, ela aparece no portão, pontual como o entardecer que muda o céu de cor. O beijo agora é mais urgente, como se o dia inteiro coubesse em um instante – o da chegada. A sua boca tem gosto de paixão. A minha, de cansaço. E mesmo assim, me deixo levar, porque há beleza em ser esperado.

À noite, a casa é pequena demais para os sonhos dela. Ela me aperta, me puxa, me pede pra não ir embora — mesmo que eu não esteja indo a lugar algum. O amor dela até sufoca, mas eu deixo. Há algo bonito em ser amado desse jeito exagerado.

E quando a meia-noite passa e tudo silencia, sei que o amanhã virá com o mesmo roteiro. O mesmo trilhar. O mesmo andar. O mesmo ímpeto se esvaindo. O mesmo. A mesma.

Seis horas. Hortelã. Um beijo breve e o mundo chamando outra vez.

A vida é repetição, mas dentro dela, nos intervalos entre o café e o feijão, mora um tipo de poesia teimosa. Daquelas que não cansa, mesmo que a gente seja envolto pela dureza de passos apressados, a poesia teimosa, delicadamente invisível a olhos nus, anda ali nos rodeando. Delicadamente nos rodeando.

Geni e o Zepelim, por Fernando Buzzetto

Priscila preparava o jantar quando sua filha Milena, chegou revoltada.

— O que foi que aconteceu?

— O Zé Ramiro. Antes das eleições procurou nosso grupo de jovens, pediu ajuda e prometeu, que se eleito, liberaria recursos para a realização do evento que estávamos planejando há um ano. Fizemos o acordo, trabalhamos feito loucos, ele conseguiu o que almejava, mas agora, nem fala conosco.

— Geni e o Zepelim.

— Como? Mãe eu não estou falando de música, estou comentando sobre hipocrisia.

A mãe parou o que estava fazendo e resolveu conversar com a filha. Fazer a menina entender o sentido daquela letra de Chico Buarque de Holanda. Levou a garota até a varanda, Milena sentou-se em uma cadeira com os pés sobre a mureta e, mesmo sem muita vontade, ouviu o que sua mãe tinha a dizer. 

“A personagem Geni é uma prostituta ou travesti que vive entre os marginalizados e sendo assim, como quase sempre acontece, é discriminada pelos ditos cidadãos de bem. Embora seja uma pessoa boa, não fazendo mal a ninguém, sofre o desprezo, é humilhada e maltratada pela sociedade local.

Porém, certo dia, surge uma ameaça para aquele lugar, que o Chico chamou de Zepelim. Para surpresa de todos, a única chance de salvação é justamente a Geni, pois foi por ela que o comandante da nave se interessou.

A partir desse momento, todos passam a tratá-la com respeito, implorando por sua ajuda. Diante da sua negativa, pois para ela tanto fazia a cidade ser destruída, Geni não queria atender à exigência do invasor.

Desesperados, prefeito, bispo e banqueiro, imploram pela sua ajuda”.

Priscila explica o significado dos três últimos personagens, representando poder, fé e capital. Não por interesse, mas sempre pronta a ajudar, Geni se convence, executa a missão necessária para salvar a cidade. A mãe olha para a filha, que nesse momento compreendeu a relação entre a música e a hipocrisia, e pergunta:

— Sabe o que acontece depois? Não precisando mais dela, a intensidade da humilhação aumentou.

Milena ficou olhando para a mãe espantada e concluiu:

— Então nessa história com o Zé Ramiro, eu e minhas amigas somos a Geni?

Priscila acenou positivamente com a cabeça e concluiu o seu pensamento:

“Em geral, políticos lembram do povo no momento de pedir votos em troca de promessas vazias, que nunca serão cumpridas depois que eles foram eleitos. Mas não são somente os políticos, empresários, comerciantes e o povo de uma maneira geral, agem desta maneira. O próprio eleitor pede favores em troca de do seu voto, mas acabam optando por outro candidato. A hipocrisia está incutida na nossa sociedade”.

Milena ficou enojada. Fez comentários pesados sobre o assunto e prometeu que nunca se aproveitaria da “boa fé” das pessoas.

Será que a jovem conseguirá cumprir a promessa que fez a si mesma?

Durante alguns dias Milena não pensou mais no assunto. Entendeu que a promessa feita pelo Zé Ramiro em ceder um espaço para as meninas desenvolverem o seu projeto de utilidade pública não aconteceria.

Políticos se elegem para terem poder e um bom emprego, não para atenderem as demandas das populações. O correto não seria o contrário? Até nas religiões existem contradições.

As pessoas são egoístas, fazem tudo para si, sem se importar com os outros, isto é, até precisarem do apoio das pessoas. Nesse momento procuram a “Geni”, imploram por sua ajuda e quando conseguem o que queriam, “jogam bosta na Geni”.

Ela entendeu a mensagem de Chico Buarque ao dizer “o prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com um milhão”, mostrando o envolvimento de todas as pessoas da cidade atacando Geni. A hipocrisia é geral. É social. Vivemos em uma sociedade em que a maioria das pessoas vive só para si.

Zé Ramiro foi um péssimo prefeito, buscou a reeleição e não obteve sucesso. Nessa tentativa voltou a procurar Milena e suas amigas. Quatro anos mais velhas, implementaram o projeto com apoio de um comerciante local. Milena voltou a ser Geni? Não. Pediu alguns favores ao candidato, mas não trabalhou por ele.

Ela não precisava mais de Zé Ramiro. Desta vez preferiu jogar pedra na Geni.

Turbilhão, por Igor Pires Leon

De repente, ou não tão de repente, fomos silenciados por um turbilhão de ordens que vinham lá de cima. Tudo o que era mais alegre, mais divertido, tornou-se proibido. A roda de samba, a discussão na mesa de bar sobre futebol; sobre a filha do Florisval, a Aninha, menina bonita, de todos os rapazes do bairro. Tudo havia acabado, assim, num sopro, num piscar de olhos, ou não.

Homens sisudos, com uniformes, armas em punho, tomaram as ruas com tanques ou montados em belos e imponentes cavalos e nos encaravam como se fôssemos todos inimigos do Estado. O povo tornou-se um inimigo do Estado. Calaram-nos com baionetas, com ameaças de prisão. Eu caminhava pelas ruas de cabeça baixa, com medo de olhar para esses homens de farda, com receio de me pararem e me perguntarem por que eu estava encarando-os. Caramba, não era fácil viver naqueles dias turbulentos. Olhava para as outras pessoas e via-se a tristeza nos rostos, o medo, a desconfiança. Havia uma tensão constante. A alegria deixou de existir. Os sorrisos não eram mais autênticos, espontâneos. Não. Até disso tínhamos receio. Caramba, receio de sorrir e… sabe-se lá mais o quê.

Revelar os nossos pensamentos? De modo algum. O outro era uma ameaça. Aquele seu amigo, talvez não fosse o seu amigo. Aquele colega de trabalho, talvez lhe entregasse para as autoridades porque você dissera isso e aquilo ou simplesmente porque o filho da puta não ia com a sua cara.

Tudo tinha de ser velado, falávamos em sussurros, não podíamos mais nos reunir em grupos, falar sobre as coisas mais simples da vida. Vida. Eles roubaram nossas vidas, nossos destinos. Tínhamos que cumprir o que mandavam, caso contrário… Caso contrário éramos presos, assim, sem mais nem menos e levados para sei lá onde. Muitos despareceram por dizerem o que pensavam ou por ir contra a ordem estabelecida! Ordem estabelecida uma merda! Uma merda! O pior de tudo era que havia gente que aplaudia, que apoiava a barbárie. Eu mesmo tinha tios, primos que pensavam igual àquele bando de degenerados.  Apoiavam os generais que bradavam aos quatro ventos que o país estava em guerra contra o Comunismo. Guerra! Eles estavam loucos de pedra e aqueles que acreditavam neles eram tão loucos quanto eles, bem como os de agora, pessoas conhecidas minhas, que acreditam que os generais estavam certos e que aquela loucura precisa voltar para colocar uma ordem neste país.

Tiquinho, meu amigo Tiquinho, foi levado da mesa do bar do Zeca, quando estava tomando sua cerveja e comendo sua porção de torresmo. Dois homens invadiram o bar e o apanharam. Ninguém soube o que o rapaz fizera. Uns disseram que ele estava envolvido com os comunistas, mas isso não era verdade, o rapaz nunca gostou de política. Outros disseram que era coisa do Valdemar, policial, que tinha Tiquinho como desafeto por conta de uma garota. Foi arrastado para o interior de uma viatura, uma Veraneio preta. Nunca soubemos o que aconteceu com o Tiquinho. Até hoje, ao me recordar, fico com o corpo todo arrepiado, a saudade de Tiquinho bate a toda hora. Amigo de bom coração. Quantos mais perderam suas vidas por lutarem pelo que achavam certo, quantos artistas tiveram suas vozes silenciadas por mostrarem nos palcos o que se passava, suas carreiras encerradas abruptamente! Hoje, ao ler os relatos dos que foram torturados, fico imaginando o que meu amigo sofrera.

Vivemos durante anos sob esse regime maldito, sob o regime do medo, da proibição da alegria, da insanidade dos oficiais sedentos de poder. Tenho medo de que algum dia esse terror possa voltar. Não sei se aguentaria viver tudo novamente, sempre com medo de dizer o que penso, de encarar o próximo sem ser mal interpretado. Por muito pouco, muito pouco mesmo, quase retornamos aos dias mais negros de nossa história. Isso não é vida. Não.

O turbilhão passou. Será?

O samba, a viola, a roseira, por Cláudia Borges

O ano era 2018, eu fazia parte do coral da universidade na qual trabalho: Coral da FURG (Universidade Federal do Rio Grande). O espetáculo montado chamava-se Tekoá, com muita música popular brasileira e algumas eram de Chico Buarque. Dentre elas, Roda Viva. Além de cantarmos, fizemos um trabalho teatral, bem simples e lindo. Fazíamos duas rodas entre contraltos, sopranos, barítonos e tudo mais que não sei. E no final, éramos uma roda só que começava a andar rápido como uma espiral no ritmo do refrão que ia acelerando. Nas três vezes que nos apresentamos, fomos aplaudidos de pé: grata a todos os colegas, à maestrina Silvia e ao Alex que nos ajudou na parte teatral. Devo confessar que foi uma festa, com responsabilidade, mas nada pesado, só queríamos que fosse perfeito e, para mim, foi.

As músicas do Chico sempre me encantaram, já havia cantado outras no coral da escola Bibiano de Almeida, do qual fiz parte por algum tempo. Mesmo depois de não ministrar mais aulas na escola, era uma alegria cantar lá, interpretando essas canções. A música é uma alegria, uma poesia cantada que encanta, comove ou denuncia.

Voltando à “Roda Viva”, ela sempre me causou o sentimento de imposição das autoridades militares, da rotina diária que nos oprime, nos tira a cor, o sabor, a música, o cheiro. É a vida real, a rotina pesada dos brasileiros. Reflete a época em que foi composta: 1968, quando havia lindos festivais de música popular brasileira. A opressão, que vai acabando com tudo até não restar mais dignidade, humanidade. Não sobra nada: nem viola, nem flores: somos máquinas trabalhando na rotina dos dias, sem perspectiva, sem ousar reclamar. Vemos isso claramente nos versos: “A gente quer ter voz ativa/no nosso destino mandar/ mas eis que chega a roda-viva/ e carrega o destino pra lá. A roda viva representa a ditadura, que no ano de 1968 lançou o AI-5 que abriu caminho para a institucionalização da tortura e dos anos de chumbo.

A gente vai contra a corrente/ até não poder resistir. Como resistir?  Quem resistiu sofreu as consequências violentas do regime antidemocrático que precisamos frisar: que não volte nunca. Estivemos na véspera de um golpe que não deu certo, mas corremos grande risco de tudo voltar a acontecer.

Não posso fazer serenata/ a roda de samba acabou/a gente toma a iniciativa/ viola na rua, a cantar/ mais eis que chega a roda-viva/ e carrega a viola pra lá. Houve muita resistência, muito sofrimento e inúmeras vidas ceifadas de maneiras horríveis. O terror destes anos fica claro na rapidez com que o refrão é cantado ao final, criando essa angústia pelo tempo que foi perdido, que não volta mais, como se não pudéssemos fugir do destino que nos resta.

Esse é o legado das ditaduras em geral, conosco não foi diferente. E na tentativa de um novo golpe, os perpetuadores queriam criar um campo de extermínio, dito por um deles numa gravação que veio a público nas investigações desse ano (2024). Eu faço tal comparação porque é muito grave que alguém pense em reproduzir campos de extermínio, fogueiras ou outras formas de coibir o diferente, o que não coaduna da mesma opinião.  Na nossa ditadura dos anos 60 e 70, o samba, a viola, a roseira/ um dia a fogueira queimou – representação da nossa cultura que ficou abalada. Mesmo assim, alguns conseguiram driblar os militares e produzir lindas canções que escondiam nas entrelinhas o protesto, a denúncia do que vinha ocorrendo no nosso pobre país.

E assim, na tentativa de falar da opressão, despercebidas da censura, nasceram obras-primas como essa música que virou peça de teatro. Salve os grandes astros, os grandes nomes da nossa cultura brasileira! Salve os que deram a vida por um ideal, para que nós hoje pudéssemos trabalhar, falar e discutir tantos e diversos assuntos! Ditadura nunca mais! Que a roda viva não nos atropele, que não chegue para queimar nossa roseira, destruir nossa viola e que possamos sambar sobre os opressores.

Livros Indicados

Separamos os livros mais relevantes de Chico Buarque. Dois deles foram premiados. Já leu algum? Então confere aí!

Estorvo
Autor: Chico Buarque

Essa é uma edição comemorativa de 30 anos com capa de Raul Loureiro.

Foi publicado em 1991 e em 1992 ganhou o Jabuti de melhor romance. A campainha insiste, o olho mágico altera o rosto atrás da porta e o narrador inicia uma trajetória obsessiva, pela qual depara com situações e personagens estranhamente familiares.Narrado em primeira pessoa, Estorvo se mantém constantemente no limite entre o sonho e a vigília, projeções de um desespero subjetivo e crônica do cotidiano. E o olho mágico que filtra o rosto do visitante misterioso talvez seja a melhor metáfora da visão deformada com que o narrador, e o leitor com ele, seguirá sua odisséia. Saiba mais…

Leite Derramado
Autor: Chico Buarque

Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. A fala desarticulada do ancião cria dúvidas e suspenses que prendem o leitor. O discurso da personagem parece espontâneo, mas o escritor domina com mão firme as associações livres, as falsidades e os não ditos, de modo que o leitor pode ler nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem não consegue enfrentar. Tudo, neste texto, é conciso e preciso; como num quebra-cabeça bem concebido, nenhum elemento é supérfluo. Percorre todo o livro a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma mulher. Os múltiplos traços de Matilde, seu “olhar em pingue-pongue”, suas corridas a cavalo ou na praia, suas danças, seus vestidos espalhafatosos, ao mesmo tempo que determinam a paixão do marido e impregnam indelevelmente sua lembrança, ocasionam a infelicidade de ambos. Embora vista de forma indireta e em breves flashes Matilde se torna, também para o leitor, inesquecível. Outras figuras, fixadas a partir de mínimos traços, circulam pela memória do protagonista: o arrogante engenheiro francês Dubosc; a mãe do narrador, que, de tão reprimida e repressora, “toca” piano sem emitir nenhum som; a namorada do garotão com seus piercings e gírias. É espantoso como tantas personagens ganham vida neste breve romance. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem. Saiba mais…

Bambino a Roma
Autor: Chico Buarque

Via San Marino, 12. No primeiro andar do prédio baixo e amarelo, o menino traça rotas no mapa-múndi que cobre a parede do quarto. A náusea sentida durante a navegação do Brasil à Itália ficara para trás e as viagens cartográficas vão sendo deslocadas, em escala menor, para os percursos pelas ruas de uma cidade a ser descoberta. Reminiscências diversas compõem esse trajeto: as primeiras manifestações do desejo; as partidas no gol a gol com Amadeo, o filho do quitandeiro; a escola e suas fugas; cartas, bilhetes e romance, toda uma escrita endereçada a Sandy L., sua paixão juvenil; a dor da apendicite. Em sua bicicleta niquelada com pneus brancos, Chico Buarque faz o zigue-zague por Roma, solta às vezes a mão do guidom e ensaia um equilíbrio fino entre lembrança e imaginação. Nesse passeio delicado, vislumbres da relação com o pai, a mãe e os irmãos somam-se às experiências formativas projetadas por um narrador às voltas com o passado. Saiba mais…

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Graduado em História e Pós-Graduado em Cinema, é autor das seguintes obras:
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