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Prezados leitores!
Mês de agosto, número 13! São muitos simbolismos. Preparamos uma edição especial, homenageando Edgar Allan Poe! “Histórias Extraordinárias” é uma coletânea de 18 contos do autor. É uma excelente oportunidade de conhecer o pioneiro do terror e da ficção científica, com suas narrativas cheias de imaginação e mistério.
Convidamos nossos colaboradores a criarem textos, releituras das “Histórias Extraordinárias”, para tornar acessível ao público do Literato uma mente brilhante do passado! Nossos autores fizeram suas próprias versões de Poe, com um olhar moderno sobre figuras mitológicas, angústia, luto, lendas, o fantástico e por aí vai…
Ótima leitura!
Histórias Extraordinárias
Autor: Edgar Allan Poe
Este livro traz, entre outras obras-primas do mestre do suspense e do mistério, “A carta roubada”, “O gato preto”, “O escaravelho de ouro”, “O poço e o pêndulo” e “O homem da multidão”.
O caráter macabro das histórias, dotadas de profundidade psicológica e imersas em uma atmosfera eletrizante, continua a conquistar novos leitores e a afirmar sua condição de clássico. Saiba mais…
Resenha do livro: Incidente em Antares, de Erico Verissimo, por Marcelo Elo Almeida
Incidente em Antares, por seu elemento mais relevante e famoso, o retorno à vida social de sete mortos insepultos, é normalmente classificado como literatura fantástica. Mas é muito mais do que isso.
Quem pegar o livro sem conhecer previamente o seu conteúdo, irá se surpreender na metade de suas quase 500 páginas. O leitor a princípio irá se deparar com a história da fictícia Antares e de suas classes dirigentes, mesclada à realidade política brasileira, desde início do século XIX até a década de 1960. Um típico livro realista histórico. Tendo começado como um povoado fundado pelo precursor do clã Vacariano, Povinho da Caveira em pouco tempo irá mudar de nome. Ainda bem, o nome é horroroso, e até o bruto Chico Vacariano concorda com isso. Antares é o nome de uma constelação que foi apresentada por um pesquisador forasteiro. O povoado progride lentamente, praticamente como uma propriedade dos Vacariano até a chegada dos Campolargo, estancieiros abastados, que passam a dividir o protagonismo na ficcional Antares, vizinha da real São Borja, da qual se emancipou.
Às vésperas do Natal de 1963, ocorrem sete mortes em Antares. Com a greve geral dos trabalhadores da cidade, coveiros compulsoriamente incluídos, os enterros são impedidos até que as reivindicações sejam atendidas pelos patrões. Estabelece-se um impasse, e os caixões ficam na entrada do cemitério, insepultos. Nesse momento, ocorre a virada no enredo, com os mortos levantando-se de seus esquifes, em protesto contra aquela situação esdrúxula. Eles querem ser enterrados em paz. Voltando em marcha para a cidade, assombram os primeiros moradores que se deparam com eles, incrédulos com aquela imagem terrificante. Na voz de seu orador, Cícero Branco, advogado quando vivo, dão um prazo para a sociedade antarense resolver a questão: meio-dia de 13 de dezembro. Não sendo sepultados, eles se colocarão no coreto da praça, indefinidamente.
O real se transforma em inacreditável mas, paradoxalmente, também é desnudado. As relações promíscuas das classes dirigentes são expostas e seus segredos inconfessáveis, revelados em praça pública: falcatruas com dinheiro público, superfaturamento, favorecimentos, torturas, conluios entre políticos, polícia e empresários, assassinatos – tudo vem à tona pela boca de sete de seus mortos. Esses não têm o que esconder nem temer.
Toda literatura é uma forma de fantasia, pois o mundo ali retratado é fruto da criação humana, de sua percepção da realidade, não podendo reivindicar sua visão como a verdade – é apenas mais uma verdade. Mas quando Erico Verissimo lança mão do fantástico e coloca em bocas insuspeitas as relações espúrias dos poderosos, esse fantástico deixa de ser gratuito e assume um papel político importante, de denúncia e tomada de posição. Recursos estilísticos em favor de uma literatura engajada e comprometida.
Erico Verissimo soube muito bem denunciar a ditadura nas páginas de Incidente em Antares. Datando o incidente no ano anterior ao golpe militar que tanto mal fez à democracia e ao Brasil, ele desvia o foco do período totalitário. Mas quem lê até o final, sabe que ele avança no tempo e adentra o período pós-64. E o livro nunca foi censurado. Talvez porque os militares nunca gostaram de literatura, talvez porque o tom jocoso do livro tenha desviado o foco dos censores. Fato é que Incidente em Antares passou incólume pelas canetas e carimbos dos quartéis. Melhor para nós e para a literatura.
Diversas ilações podem ser feitas em uma obra tão rica. O odor insuportável que exala dos insepultos, a infestação de ratos, a ameaça de peste e de contaminação da água, tudo acaba por nos remeter fatalmente à imagem das sete pragas do Egito. Sete mortos, será coincidência?
Sete, conta de mentiroso. Mas não dos mortos falantes, eles são apenas vozes insuspeitas. Quando vivos, mortais comuns, com seus dramas, virtudes e fraquezas. Cícero Branco mesmo, o porta-voz do além-túmulo, foi partícipe nas falcatruas e desmandos do prefeito, do coronel Tibério Vacariano e de seus asseclas, contribuindo com seus conhecimentos jurídicos para o assalto aos cofres públicos. Mas, na condição de morto, não tem por que mentir mais. Nem ele nem Quitéria, matriarca dos Campolargo. Nem o maestro Menandro Olinda, solitário e suicida. Ou José Ruiz, o sapateiro apelidado de Barcelona, conhecedor de todos os pecados sexuais de Antares, das traições dos homens e das mulheres. João da Paz, vítima da tortura policial, que deixa a mulher grávida de oito meses. Ou a envelhecida Erotildes, prostituta muito requisitada nos áureos tempos, que vem a falecer por desleixo do médico do hospital da cidade, também integrante da poderosa e corrupta classe dirigente de Antares. Pudim de Cachaça, alcoólatra, envenenado pela esposa, fecha o grupo de braços dados com Erotildes.
Há semelhanças também de Incidente em Antares com A Peste, de Albert Camus, que se passa na fictícia Orã, cidade argelina, quando os prefeitos de ambas as cidades oferecem recompensa em dinheiro para quem capturasse ratos. Camus busca uma reflexão filosófica, tão ao gosto do existencialismo francês, enquanto Veríssimo é mais explícito politicamente, expondo claramente a hipocrisia social e o conluio das classes dirigentes.
Incidente, a princípio, parece um eufemismo para o que se passou em Antares. Afinal, mortos sentados na praça do coreto é mais do que um simples incidente. É perturbador. Porém, ao longo de mais de 150 anos de história, aquele foi o único momento em que as estruturas sociais foram momentaneamente abaladas. “O tempo e a água”, como bem disse o professor Libindo – mais um integrante do grupo dos donos da cidade – farão com que aquele incidente seja esquecido, ou mesmo posto em dúvida. A chamada Operação Borracha, nome risível para o conjunto de ações que buscou apagar os fatos da memória coletiva, conseguiu seu intento. Tudo volta a ser como antes no quartel de Abrantes. A Ditadura Militar se instala, os donos do poder continuam mandando como sempre e os mortos, agora sepultados, não falam mais, ainda que alguém tenha coragem de pichar um palavrão na rua Voluntários da Pátria:
— Li-ber-da…
Incidente em Antares
Autor: Erico Verissimo
Meio-dia, sexta-feira, 13 de dezembro de 1963. Uma assembleia é convocada em Antares, pequena cidade no sul do Brasil. Há uma greve geral, e até mesmo os coveiros estão sem trabalhar, de modo que os cadáveres não podem ser sepultados. À luz do sol, vagando livremente pelas ruas, os mortos-vivos enfim se sentem à vontade para vasculhar a intimidade alheia e falar o que bem entendem, sem receio de repressão das autoridades. Publicado originalmente em 1971, o último romance de Erico Verissimo se tornou uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira. Crítica política contundente, sátira da ditadura militar e marco do realismo fantástico ― trata-se possivelmente do primeiro livro de zumbis do país ―, Incidente em Antares impressiona por seu vigor e sua atualidade. O presente volume traz posfácio do escritor Sérgio Rodrigues, que coordena a edição, além de ampla fortuna crítica e ensaio visual inédito do artista Fernando Vilela. Saiba mais…
Filme: Vida! A Vida é uma Festa! (2017), de Adrian Molina e Lee Unkrich, por Karine Souza e Pousas
“Viva! A vida é uma festa!” é uma animação da Disney lançada em 2017. A narrativa se passa no México e conta a história de Miguel, um jovem de uma família de sapateiros que sonha em ser músico. Porém, essa vocação encontra resistência por um trauma familiar: o tataravô abandonou a mulher e a filha para ser músico e nunca mais voltou.
Miguel segue firme em seu propósito. Vai ao cemitério do Dia dos Mortos e rouba o instrumento que está no mausoléu do célebre músico local, Ernesto De La Cruz. Assim, o menino é transportado para o vibrante mundo dos mortos.
A sacada do roteiro é mergulhar de cabeça na cultura mexicana. Não há padres, céu ou inferno, tampouco apelo ou dogmatismo religioso. É tudo colorido, animado e vívido, com uma cidade vibrante que muito se assemelha ao mundo dos vivos. Nas animações, são raras as abordagens diretas sobre a morte. Voltadas ao público infantil, é um tema ácido para os pequenos. Mas aí reside um outro acerto dos estúdios Pixar: a morte encarada pela perspectiva do afeto familiar.
O afeto familiar é construído com um laço da presença física, do convívio ao lado daqueles que amamos. Quando um ente querido morre, permanece, de algum modo vivo, nas nossas memórias afetivas. A morte derradeira ocorre no momento em que ninguém mais se lembra de nós.
A sensibilidade do menino Miguel se traduz no seu amor pela arte, pela música. É ele o fio condutor das memórias de sua família, bem como de sua redenção. Não é à toa que a bela canção tema do filme se chama “Lembre de mim”, que invoca as lembranças de Mamam Coco, a anciã da família.
Coco, a bisavó de Miguel, é silêncio. O uso dos efeitos de som como contraste ao silêncio da anciã faz nossos olhos se encherem de lágrimas. É um clímax artístico, tênue, suave, que consegue transmitir ao espectador a belíssima mensagem do filme: no final das contas, o mais importante é sermos lembrados quando não estivermos aqui. A vida é uma festa, e ela continua…
Viva! A Vida é uma Festa! (2017), de Adrian Molina e Lee Unkrich.
Em Viva – A Vida é uma Festa! Miguel é um menino de 12 anos que quer muito ser um músico famoso, mas ele precisa lidar com sua família que desaprova seu sonho. Determinado a virar o jogo, ele acaba desencadeando uma série de eventos ligados a um mistério de 100 anos. A aventura, com inspiração no feriado mexicano do Dia dos Mortos, acaba gerando uma extraordinária reunião familiar. Saiba mais… (AdoroCinema)
Bruxas existem? Queimamos espartilhos nas fogueiras! por Simone M M Lopes
Lembro-me da época em que homens e mulheres primitivos adoravam a Grande Mãe. A vida era regida pelo equilíbrio, pela relação das pessoas com a natureza e seus ciclos de vida e morte, como os ciclos menstruais das mulheres, de fertilização e gestação.
Com o tempo, vi os domínios da Deusa-Mãe serem invadidos e esse poder mágico e misterioso das mulheres ser visto como um monstro contra o qual heróis ou deuses lutaram até destruí-la, supostamente recebendo um tesouro que beneficiava toda a humanidade. Por conta disso, o culto à Deusa-Mãe foi abalado, mas vários povos continuaram cultuando divindades femininas por sua magia, com amor, mas também medo.
Foi na Idade Média que o poder da bruxaria foi demonizado pelo cristianismo. Eu estava lá, e posso afirmar que ele prometia proteger as pessoas de um poder que a qualquer momento poderia se virar contra elas. Em troca dessa proteção, o “bondoso” cristianismo passou a controlar suas vidas e, acredite ou não, transformou os poderes sobrenaturais da bruxaria em dons miraculosos do seu Deus. À Igreja eram possíveis milagres e eventos mágicos, já os rituais não cristãos eram taxados de atividades demoníacas. Testemunhei o curandeirismo e a medicina baseada nos conhecimentos sobre a natureza serem condenados porque resistiam à dominação do clero.
As mulheres eram acusadas de quase todas as bruxarias por serem consideradas criaturas imperfeitas por natureza. Para a sociedade, não passavam de pessoas fracas intelectual e psicologicamente, incapazes de distinguir o bem do mal. Acusadas de terem comportamento instável por serem mais carnais que os homens (a exemplo de Eva, dizia a Igreja) e difíceis de serem disciplinadas, o que mais se poderia esperar delas além do mal e da depravação?!
Curiosidade, malícia, rancor, vingança e loquacidade passaram a ser atribuídos quase exclusivamente às mulheres, o que as transformava em iscas perfeitas para o Diabo. E se gostassem de música e de dançar, então?! Claro que eram bruxas!
Como as mulheres eram perseguidas por qualquer coisa que desagradasse alguém, elas tinham que ser boas, pacientes, silenciosas, jovens, belas, domesticadas e religiosas, senão eram acusadas de serem bruxas por tentarem tomar o controle masculino. Ah, pior ainda, serem velhas ou feias também mostrava que se tratavam de bruxas. Ouso dizer que vem de lá esse culto cruel à beleza e à jovialidade.
Vi muitas mulheres com um conhecimento precioso sobre as ervas, os ciclos das estações e os processos fisiológicos serem acusadas de satanismo. Ao realizarem rituais em busca de um bem pessoal ou do grupo, da cura de uma doença ou de uma colheita bem-sucedida, entendia-se que estavam tentando encarnar o poder da Deusa-Mãe, considerada perigosa e má em sua essência.
Também as mulheres independentes, expressivas e com comportamentos não aceitos pela sociedade eram acusadas de fazer feitiços para conseguir poder e influência, sendo, portanto, bruxas por não se sujeitarem aos seus “tutores” – qualquer homem, fosse ele o pai, marido, irmão e o representante do clero.
Mas foi durante a Caça às Bruxas que mais me revoltei! Os homens ricos e educados que conheciam sobre ervas, poções e rituais mágicos tinham o honroso título de alquimistas e eram admirados por seu trabalho. Já as mulheres com os mesmos conhecimentos eram “bruxas”, e mereciam ser perseguidas. E com requintes de crueldade! Para verificar se uma mulher era bruxa, a arrastavam até um rio ou lago, a amarravam nua e a jogavam na água. Se ela boiasse, por ser mais leve que o normal ou por ter agilidade para nadar, era bruxa por ter renegado o seu batismo ao aceitar o Diabo, o que provava que era bruxa. Se afundasse, eles tentavam puxar seu corpo de volta. Adivinhe só se ela ainda estava viva!
Quanto às consideradas bruxas, a Inquisição as torturava até que confessassem os detalhes sórdidos de sua feitiçaria e de suas malditas práticas sexuais com demônios. A maioria das mulheres que negavam ser bruxas eram queimadas na fogueira, então muitas delas admitiam a prática de bruxaria para diminuir o seu sofrimento e para ter uma morte mais rápida – pela forca. Eu, no lugar delas, teria feito o mesmo! Ou seja, se uma pessoa tivesse alguma diferença com uma mulher, bastava acusá-la de bruxaria.
E quanto às vassouras? Lembro-me de Alice Kyteler, que foi queimada viva por confessar ter besuntado o cabo de uma vassoura e sua axilas com um unguento voador, alucinógeno à base de mandrágora, beladona e figueira-do-diabo, e ter voado nela até o ponto do ritual satânico.
Assim, baseado em tudo que testemunhei, posso afirmar que a caça às bruxas foi uma estratégia dos homens para denegrir as mulheres, destruir o seu poder social, e as relegar a papéis secundários na sociedade, mantendo-as submissas às figuras masculinas.
Eu, que agora me apresento a você como a tal Bruxaria, deixo aqui um convite à reflexão: não teria a nossa sociedade atual herdado o seu machismo e a sua misoginia dessas crenças e práticas atrozes contra as mulheres e o seu protagonismo ao longo da história? Ouso deixar aqui um conselho: mulheres, apropriem-se de sua força misteriosa e mostrem do que são capazes. De gerar vidas, relações afetivas e profissionais saudáveis, e de contribuir para um mundo melhor e mais justo.
Ah, se você não concorda com isso, já deixo um aviso: atenção, porque a minha magia é poderosa!
Exposição sobre Bruxarias em Toledo, Espanha
Fotos tiradas por Simone M M Lopes em sua visita a exposição.
Medeia Mexicana, por Cláudia Borges
A importância da oralidade nas nossas lendas se faz presente a partir do momento que percebemos que muitas passam de boca em boca e chegam na atualidade, com várias informações, de que foi real, alguém viu, aconteceu e tem até nome. Mas são essas lendas que despertam curiosidade, esses seres que criados na nossa imaginação – ou não – nos trazem diversas e divertidas versões do que pode justificar um acontecimento real (o fantasma que vem se vingar ou realizar algo que faltou na vida), ou apenas inventadas para assustar, criar uma forma de proibir sem ser proibido.
As lendas e monstros presentes em nossa cultura são muitos e variados, mas venho falar aqui de duas que se assemelham em alguns aspectos. A mulher de branco que aparece em várias culturas e a chorona (mexicana), que é a Medeia Americana.
Em qualquer dos casos, as mulheres sofrem por alguma dor ou castigo e aparecem para vingar o passado triste que tiveram. A mulher de branco pode ter sido alguém que não correspondeu a um amor e foi morta por isso, junto com sua família ou não, são distintas as possibilidades. A chorona possui várias versões, a que me chama mais atenção é a de que após ser abandonada pelo marido afoga os filhos no rio e se afoga também, volta para chorar e pegar outras crianças para substituir os seus. Mas para apresentar essas personagens para vocês vou contar uma história:
O Turista Perdido
Edgar nunca havia visitado o México. Estava encantado com a possibilidade de conhecer esse país tão vivo culturalmente, tão colorido. A culinária, os costumes, o Dia dos Mortos, as pirâmides pré-colombianas. Tudo era muito novo, lindo e interessante aos olhos do nosso turista. Tirava fotos e mais fotos. Não perdia uma oportunidade. E tudo ia para as suas redes sociais, talvez faturasse uma grana com o engajamento do seu canal no youtube, pois grava vídeos e vlogs sobre a viagem.
Chegou na capital em setembro. Ficaria até novembro para ver o Dia dos Mortos. Na Cidade do México, visitou os principais pontos turísticos, Igrejas e prédios históricos. Tudo era devidamente fotografado, gravado, pesquisado.
Nosso turista passou por mais algumas cidades e foi também ao interior. A violência que sempre era noticiada nos jornais o deixou atento, mas não com medo. Uma noite dessas, bem quente, em que estava num hotel simples, quis respirar o ar da rua e abriu a janela, da qual podia ver parte da cidade e a linda lua cheia com nuvens em seu entorno. Algo não o deixava dormir, talvez o calor. Edgar não queria perder o prazer de olhar pela janela. Ouviu um barulho, espiou e um gato preto passou pela rua, atravessou de um lado ao outro. Só que o barulho não era miado de gato.
Edgar ouviu novamente aquele barulho e não sabia o que era. Tomou uma atitude, saiu em busca do barulho, desceu do seu andar ao térreo e caminhou umas boas quadras do hotel. O barulho ia aumentando. Já parecia um grito de desespero, um choro contínuo. Resolveu que era hora de retroceder e retornar ao hotel. Era madrugada e não conhecia nada da cidade, mas não podia deixar alguém naquele sofrimento. Antes de ir, deu mais alguns passos até a esquina mais próxima, na tentativa de encontrar a origem dos gritos e ser o herói da noite. Chegando, olhou à esquerda e nada, à direita viu um vulto ao longe, uma mulher com um véu branco todo rasgado. O cérebro de Edgar parou por um segundo, mas foi rápido e saiu correndo. Levou metade do tempo no retorno ao hotel. Chegou sem fôlego! A cara de apavorado, olhos arregalados e mão ao peito. O atendente, preocupado, perguntou o que foi, Edgar nem conseguiu arriscar no espanhol e em português mesmo, falou que viu a mulher de branco. O atendente compreendeu e lhe explicou:
— La llorona, hombre, no hay lo que temer!
Foi aí que Edgar soube que a chorona era uma lenda que não lhe oferecia perigo, pois pegava crianças e não adultos. Tratou de ir embora no outro dia, seu turismo na cidade foi pouco, depois do susto, não ficou na grande capital. Visitou mais alguns lugares históricos e voltou para casa no Brasil. Sem choros, sem sustos! Este Edgar não escreveu uma boa história de terror.
* Caso alguém se interesse em pesquisar sobre:
https://anaisabecan2011.ufba.br/Arquivos/Pereira-Dion.pdf
Coral de Assombros, por Rita Perez Germano
Vivo nesta casa há anos. É uma construção antiga, de janelas estreitas e portas que rangem como se contassem segredos esquecidos. Desde que me mudei, sinto uma presença que me observa. No início, eram sussurros distantes, palavras indecifráveis que se perdiam no vento. Mas com o tempo, as vozes ficaram mais claras, como se alguém estivesse ao meu lado, murmurando coisas que só eu podia ouvir.
À noite, vultos dançam pelos corredores. Passam rápido, são manchas quase invisíveis, mas sei que estão lá. Às vezes, parecem tomar forma, espelhando meu próprio reflexo amarelado pelo tempo. Tento ignorar, mas as vozes são insistentes.
Um dia, enquanto relia alguns de meus diários, envolvida por uma iluminação fraca, perdida em minhas histórias mal contadas, decidi entrar em um quarto que eu mesma havia deixado esquecido. Era mais seguro para as minhas memórias que ele ficasse inabitável. Eu não queria enfrentá-lo e sentir todas as dores do vazio que ele me trazia. Estava trancado. A chave estava ao lado, em cima de uma mesa, como se me esperasse – e me esperava. Peguei e a introduzi na fechadura enferrujada. A porta rangeu e se abriu lentamente, revelando aquele quarto vazio, exceto por um espelho imenso – que meu passado havia deixado lá estático.
Entrei e a porta se fechou atrás de mim com um estalo final, como uma sentença. Fui até o espelho e a imagem que me encarava não era exatamente a minha. Havia uma distorção sutil. Cheguei mais perto, mirando aquele espelho que por muito tempo evitei, e foi então que as vozes começaram a falar, mais alto do que nunca, e percebi que eram todas iguais à minha.
Os vultos que me assombravam, os sussurros que me cercavam, tudo era eu. O espelho mostrava versões de mim mesma, cada uma presa em um instante de tempo, repetindo as mesmas dores. Gritei, mas o som da minha própria voz ecoou de volta, como um coral de assombros.
Entendi que estou presa neste ciclo. Cada vez que ouço um sussurro, é minha própria voz do passado. Cada vulto que vejo é uma sombra de mim mesma, perdida em uma memória esquecida. Esta casa não é assombrada por espíritos, mas por mim mesma, por fragmentos de quem um dia fui – ou poderia ter sido.
Estou aprisionada, não apenas na casa, mas em mim mesma. As vozes continuam, e agora sei que, um dia, serei mais uma delas, uma sombra a vagar pelos corredores, assombrando a próxima versão de mim.
De Quando Vi o Lobisomem, por Luiz Rosa
É que você sempre pede pra contar a história, daí não atino esquecer. Foi há tanto tempo, outra vida! Na época que fui agrimensor pro Estado da Guanabara. Fui e não fui, posso dizer. Não faço ideia, até hoje, de como se faz uma marcação, topografia. Confiaram em mim, tá feito. Foi nos idos de 1972, lembro bem: Santo Expedito da Viração, o nome da vila. Foi de lá que me ajeitei: ganhei dinheiro, conheci a tua avó, troquei a botina pela alpercata e montei comércio. O mercado que teu pai trabalha, coisa minha, mas a história que tu quer ouvir não é essa. Desde moleque que você se interessa por histórias impossíveis e, sei bem, que tu acha que essa também não é verdade, mas pode ter certeza que é, vi com meus próprios olhos, estes que a terra há de comer.
Ouça então: nessa vila tinha um lugarejo, canto de mundo, ainda mais afastado, longe toda a vida. Estive lá fazendo marcação de terra, confirmando piquete, dando credibilidade à cerca. Apertando mão de fazendeiro, assinando sem ler, coisas de cidade de interior, não acontece por aqui. Voltando: tudo se passou no córrego do Açucena, nascente gorda que desemboca em um lago que, por fim, se derrama no Paraíba do Sul. As margens d’água eram as divisas entre a fazenda Pantaneira e o sítio do finado Zé do Brejo. Picada miúda, dois alqueires, alagadiço e lamacento, que o fazendeiro queria porque queria anexar aos seus registros. — Capinheira muita pra coisa pouca, dizia ele.
Ali que vivia dona Julieta, quase só, com seu filho metido a doido, meio brigão, Pedro Barreira. Conheci eles fazendo uma visita de medição, gente boa, tomei café, benção e conselho. Sem querer, contei dos interesses do fazendeiro. Fiz muita coisa errada naquele tempo, mas bulir com os piquetes daquela gente, pode ter certeza que não fiz: tenho meus princípios. Gente pobre toda a vida, miserê danado… Dona Julieta, mãe de sete homens, devota que era, pôs nome de santo em todos, mas nenhum prestava: — deram pro lado do pai, era o que contava. Foram embora, restando apenas o menino desajuizado, a salvação e a tormenta da pobre mulher, coitada… Cuidavam um do outro: ele, na força bruta, um animal cavando e plantando o que dava: banana, inhame, angolão1. Ela, o esteio da casa, segurando tudo na base da reza, do oculto, da crença no divino.
Contava-se que a vida daquela gente mudara com o fim do Zé do Brejo. Não, não vou abreviar nada pra você não. Não pediu a história? Agora ouça. Vou te contar ela do jeito certo, como nunca contei pra ninguém, do mais, lembrar dos pormenores é bom pra minha memória, me faz saber que ainda não tô caduco. Como dizia, Zé do Brejo era quem mantinha a família no eixo, todo mundo trabalhando, plantação de arroz, o sítio todo verde debaixo d’água. Imagina: cantoria de sapo, limpa-campo para dar em doido?! Você nem sabe o que é limpa-campo. Não falei? É cobra.
Dona Julieta, com seus filhos, todos adultos, homens feitos, deu de esperar mais um. Seu marido, antes de morrer, tossia feito cachorro velho, pondo os bofes pra fora. Então fez promessa: salvo o pobre Zé da maldição tísica, daria a criança em batismo para a sua tia avó com quem mantinha rixa. Deus não aceitou a barganha, o levou mesmo assim. Quando findou-se o velho, antecipou-se o parto. Como já sabe, nasceu Pedro. Sabendo das obrigações2 para o sétimo filho homem, fez vista grossa: queria pagar a promessa mesmo sem milagre. Passou anos dizendo que iria descer o mapa, achar a casa da velha e obrigá-la a batizar o menino, nunca aconteceu. O temporão, pagão a vida inteira.
Um a um foram todos embora, caçar mundo, ninguém voltou pra ver a mãe. Arrozal virou capim, brejo tomou conta. Passou fome, passou raiva, encrustou, olhou pra dentro, virou bruxa. Rezando, benzendo, fazendo mandinga, receitando ervas, banhos e orações pra todo aquele que batesse em sua porta. Até eu recebi a minha prescrição: me bateu com arruda, fez cruz na minha cabeça, baforou cachimbo no meu ouvido. Minha vida mudou, que Deus a tenha. Só não sabia resolver a situação do filho, talvez não quisesse resolver.
Acontece que o rapagão, dava, de vez em quando, de ser o que não era. Todo o mês, com a viração, mudava o gênio: sumia, se engalfinhava nos matos, na mata, dois, três dias, uma semana sem aparecer. Quando voltava, tímido e conturbado, cabisbaixo toda a vida, lanhado dos pés à cabeça, quase sempre nu e descalço, era acudido pela mãe. Que, fazendo vista grossa, fingia não saber das histórias assombrosas de criatura maligna rondando a região, sempre na lua cheia, devorando os bichos de terreiro, deixando rastro de pegada, estourando boiada, apavorando o consciente de toda gente. Nas noites enluaradas não se fazia mais seresta, não se acendia fogueira, não se seguia novena.
Agora que peguei tua atenção, vou contar o que vi: lembro-me como tivesse sido ontem: lua cheia, enorme moeda de prata clareando o vale. Dirigia uma caminhonete amarela, igual a cara que tu tá fazendo. Estava em direção da fazenda Pantaneira, convidado pra jantar: falar qualquer assunto da capital, negócios futuros, divisa das coisas. Calor dos infernos, véspera de dezembro, seguia de janela aberta, me lembro: cheiro de mato, de pau-d’alho, de floração noturna, noite agradável em estrada pedregosa, exatamente isso.
Depois da ponte, uma curva para direita ficava a porteira. Estava aberta, achei que era para mim. Parei de frente, desci. Era uma casarão alto, branco, coisa linda de se ver. Todo aberto. Silêncio do cabrunco! Nem cachorro latia. Fiquei receoso… De repente, uma sombra passou pelo vão da janela, silhueta grotesca! Pensei ter visto um bode andando em duas patas. Minh’alma gelou! Um grunhido alto rasgando meus ouvidos: —AIHHHHHHH!!! Tendi a correr, não consegui. Minhas pernas travaram e, desprendidas do meu desejo, adentraram a porta da sala. Fui carregado pela curiosidade, não pela coragem. Quase que borrei nas calças, talvez tenha, confesso.
Pra mim, histórias de lobisomem, curupira, vampiro era tudo bobagem do povo, crendice besta, coisa de assustar criança. É nada… Era pedaço de gente pra todo lado, sangue espirrado na parede, troço rasgado, tudo revirado, cheiro de morte, um inferno! Cenário de terror, creio em Deus Pai! O chão, assoalho de madeira, tremia e eu lá, congelado, era o bicho se aproximando. Olhou bem pra minha cara, coisa assustadora…todo peludo, encurvado, com os dentes pra fora. Parecia um cão, feitinho! Ficamos os dois, olho no olho, de repente, coisa mais estranha, esticou o braço pro meu lado, garras enormes… E, sem pensar direito, estiquei o meu também. A gente se cumprimentou: aperto de mão! E ele foi embora. Corri até a caminhonete e sumi na estrada. Nunca mais voltei lá. Coisa do cão, Deus que me perdoe, nunca mais entrei nos matos, nunca mais quis saber disso.
- Capim
- A premissa de que o sétimo filho homem de uma família deve ser batizado pelo filho mais velho, caso contrário, vira lobisomem.
Quadrinhos de Terror no Brasil pelo Olhar de Duas Mulheres, por Natania A S Nogueira
Na década de 1950, as Histórias em Quadrinhos (HQs) de terror foram um gênero em ascensão no mercado estadunidense. O Brasil, nesta época muito influenciado pelas revistinhas vindas dos Estados Unidos, começou a publicar este material. Mas o terror já havia dados seus primeiros passos em terras brasileiras bem antes disso. Podemos destacar o pioneirismo brasileiro com a publicação da série “Garra Cinzenta”, na forma de suplemento do impresso “Gazetinha”, entre os anos de 1937 e 1939. Esta HQ possuía elementos de fantasia e ficção científica, além de tramas policiais, características que, posteriormente, passaram a estar presentes no gênero do terror.
Os quadrinhos de terror ganharam um público cativo, no caso do Brasil, passando ter uma produção nacional ativa, com a adaptação de personagens clássicos e a criação de muitos outros, a partir de histórias tiradas do nosso folclore e de mitos urbanos. Na década de 1960 já existiam mais de 30 títulos disponíveis nas bancas de jornal. A Editora La Selva foi uma pioneira. Além dela destacam-se, também, a Continental e a GEP (Gráfica Editora Penteado), O Cruzeiro, EBAL (Editora Brasil-América Limitada) e RGE (Rio Gráfica Editora). A produção de quadrinhos no Brasil, com um amplo público consumidor, durou cerca de 40 anos.
O terror é caracterizado por cenas de violência, nudez e muito erotismo e, no Brasil, deixou sua marca nos HQs, abrindo espaço para vários artistas e roteiristas nacionais como Gedeone Malagola, Nico Rosso e Ignácio Justo. O que muitos desconhecem é que, em meio a grandes mestres, temos, pelo menos, duas mulheres que foram pioneiras no gênero: Helena Fonseca e Cida Godoy. Elas criaram personagens e narrativas que se tornaram clássicas dentro da produção de terror nacional e mesmo em outros gêneros.
Helena Fonseca foi uma roteirista de histórias em quadrinhos brasileira, muito ativa entre os anos de 1960 e 1980. Trabalhou com vários gêneros, como aventura, superaventura e terror. Ela pode ser considerada uma das pioneiras dos gibis brasileiros, tanto pela sua versatilidade, quanto pelo fato de ter desenvolvido diversos roteiros em um universo no qual as mulheres não conseguiam se destacar. Helena colaborou para os títulos: Almanaque Clássicos do Terror, Almanaque do Drácula e Seleções de Terror. Juntamente com Nico Rosso criou “Naiara, A Filha do Drácula”, uma personagem de terror brasileira. Ela ajudou a dar ao personagem características distintas daquelas do livro de Bram Stoker.
Naiara é a filha rebelde de Drácula, bem no espírito do final dos anos de 1960. A vampira faz de tudo para contrariar o pai e fugir da sua autoridade. Ela bebia o sangue das suas vítimas em uma grande taça de cristal. O erotismo presente nas histórias é uma das suas principais características, o que a classificava para o público adulto. Curiosamente, Naiara chegou às bancas em 1967, bem antes de Vampirella, personagem criada por Forrest J. Ackerman em 1969, com a ajuda Trina Robbins e Frank Frazetta.
Já Maria Aparecida Godoy, a Cida Godoy, destacou-se nos contos de terror baseados em histórias do folclore local, do interior de São Paulo. Até onde se sabe, Godoy foi uma das primeiras mulheres quadrinistas negras a se destacar e publicar para o grande público no Brasil. Nascida em Guaratinguetá, interior de São Paulo, ela foi roteirista nas revistas Calafrio e Mestres do Terror. Seu interesse pelo terror veio da infância pobre. Sua família não tinha rádio ou televisão, então a forma como se divertiam à noite era a contação de histórias de assombração.
Na escola, seu interesse pelo tema foi instigado quando teve que fazer um trabalho sobre histórias do folclore do Vale do Paraíba, o que lhe rendeu, posteriormente, material para criação de seus roteiros. Ela também se inspirava nos filmes de terror, principalmente os produzidos na década de 1960. Cida Godoy criou histórias genuinamente brasileiras, fugindo de estilos importados e dando um novo vigor aos quadrinhos nacionais. Tornou-se uma argumentista requisitada e trabalhou ao lado de nomes importantes das HQs. Entre suas criações podemos citar Zora, a mulher-lobisomem e sua versão de Drácula. Esse último foi um trabalho em parceria com o ilustrador Nico Rosso, e cujo sucesso se deveu principalmente à originalidade do roteiro. Godoy inovou ao trazer para suas histórias personagens como Joana D’Arc, que chegou a enfrentar o notório vampiro Conde Drácula.
A produção dos gibis de terror acabou sofrendo, posteriormente, com a censura imposta pelos anos de Ditadura Militar, embora estes quadrinhos tenham sido publicados ao longo das décadas de 1970 e 1980. Cenas de violência e erotismo eram vistas pelo olhar conservador do regime como uma má influência para os jovens. As HQs passaram, então, a ter suas vendas reduzidas.
Mas ainda há muitas publicações do gênero, que circulam entre pequenas e grandes editoras ou são fruto de trabalhos independentes. Atualmente, temos muitas mulheres que trabalham com o terror, não apenas como argumentistas como, também, ilustradoras. Helena Fonseca e Cida Godoy certamente servem de inspiração e provam que, em termos de criatividade, quadrinhos podem ser um espaço plural no qual as mulheres são capazes de produzir para todos os públicos.
Referências
CAVACALTI, Ionaldo A. Esses Incríveis heróis de papel. São Paulo: Rd. Mater, 2016.
FORGUEL, Israel. A Magia da Nona Arte. São Paulo: Clube de Autores, 2016.
HELENA FONSECA. Disponível em:
http://www.wikiwand.com/pt/Helena_Fonseca#/Refer.C3.AAncias, acesso em 1º abr. 2017.
PEPLO, Willian Fernando. O gênero de terror e o mercado editorial de quadrinhos brasileiro. Revista TEL, Irati, v. 11, n.2, p. 68-86, jul./dez. 2020. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/tel/article/view/14397. Acesso em 17 ago. 2024.
RAMONE, Marcus. A trajetória das HQs de terror no Brasil. Universo HQ (2015). Disponível em: https://universohq.com/materias/a-trajetoria-das-hqs-de-terror-no-brasil. Acesso em 17 ago. 2024.
SILVA, Luciano Henrique Ferreira da. O gênero de horror nos quadrinhos brasileiros: linguagem, técnica e trabalho na consolidação de uma indústria – 1950/1967. Tese apresentada como requisito final para a obtenção do grau de Doutor em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, PPGTE/UTFPR, Curitiba, 2012.
UCHOA, Francisco. Naiara de presente (2012). Disponível em: https://planetamongo.wordpress.com/2012/01/23/naiara-de-presente. Acesso em 17 ago. 2024.
O Porco Preto, por Daiane Carrasco
Edgar Allan Poe tem um conto famoso intitulado “O gato preto”. Não quero, de modo algum, comparar-me ao Poe. Até porque aqui é terra brasilis: o sinistro vira piada. Como o tema que trazemos nesta edição são as “Histórias Extraordinárias”, homenageando o referido autor, apresento-lhes uma história extraordinária, não de um gato, mas de um porco preto.
Depois de passar dois anos no Amazonas, retornei à casa materna. Era final de dezembro de 2007. Estávamos pintando a fachada. Poucos vizinhos sabiam que eu estava de volta. Surpreendentemente, ouço uma voz gritando o meu nome no portão: ‘Daiane! Daiane!”. Larguei os petrechos de pintura e fui atender. Vi uma silhueta desleixada, um ser barulhento no andar e falar – era Marivaine, vizinha da rua de trás. Nunca havia me chamado antes, mesmo após décadas de convívio. Fui cordial. Ela parecia aflita.
Pedi que contasse o ocorrido. ‘Daiane, meu porquinho subiu no telhado. Ele tá aí em cima da casa de vocês. Tu podes olhar pra mim?’ Marivaine era sobrinha de um botequeiro. Imaginei que estivesse alucinando por conta de uma bebedeira. Quem era eu para julgar? Qual seria o peso de um pilequinho no meio da tarde, em final de dezembro? Mas ela insistiu. Meu quarto ficava no segundo andar, no sobrado estilo puxadinho. Subi as escadas, olhei pela janela. Foi quando atestei com meus olhos: um porquinho preto, curioso, estava ali, pleno, em cima do telhado da casa da minha avó, logo à frente. Voltei até o portão, atônita.
Marivaine prosseguiu seu relato: ‘Deixamos uma escada encostada na parede. Ele aprendeu a subir, chegou ao telhado e escapou do chiqueiro.’ E assim, o astuto porco preto pulava de telhado em telhado, ganhando a liberdade, nas alturas, como uma paródia caipira do Super-homem, em seus cascos marotos em vez de voar.
A insólita cena era bizarra, porém onírica. Não era Babe, o porquinho que desejava ser um cão pastor de ovelhas. Era um anônimo a explorar telhados. Mas podia machucar-se. Com seu peso, quebrava as já envelhecidas telhas das casas antigas e modestas da quadra. Escapava cada vez que alguém se aproximava. Não teve jeito: liguei para o Corpo de Bombeiros. Obviamente, tive que advertir o atendente que não se tratava de trote.
Pedi discrição. Dois homens e uma rede de captura seriam suficientes. Depois de quinze minutos, o barulho da sirene se fez ouvir ao longe. O caminhão com as luzes azuis e vermelhas piscantes se aproximava. A vizinhança, parecendo um enxame, tomava o meio da rua. Não… o caminhão não era coincidência de uma ocorrência próxima. Era para mim, ou melhor, para o porco.
‘O porco é seu?’ – enfureci-me com a pergunta porque Marivaine, tomada pela vergonha, havia sumido, deixando-me com a responsabilidade e com o constrangimento pelo dito cujo. ‘Olha bem pra mim, senhor bombeiro. Eu tenho cara de quem cria um porco no meio da cidade? Aliás, eu nem conheço esse porquinho!’ Mentira… Há algumas horas conhecia o pequeno meliante. Torcia para que ele ganhasse o mundo e não fosse visto como um mero pedaço de carne.
Os bombeiros montaram sua escada, subiram no telhado, mas não conseguiram capturá-lo. Em um dado momento, caiu em um fosso. Todos tiraram seus capacetes em sinal de luto, de respeito. Segundos depois, ele reapareceu em outro telhado, saltitante, e todos bateram palmas. Coletivamente, desistimos da caçada. Era melhor arcar com o prejuízo das telhas quebradas do que arriscar a vida de alguém a tentar descer de lá com o animal a debater-se. Seria um porco livre, bicho solto das lajes, dos terraços, enquanto a natureza assim o quisesse.
O circo se desfez. À noite, no conforto do lar, novamente insurgem os gritos de Marivaine no portão: ‘Daiane! Daiane!’. O agouro daquela voz já me dava nos nervos. Mas, mesmo assim, fui me arrastando, como se pesasse muito a boa educação que ainda me restara, carregando uma tonelada em cada perna. ‘Só pra avisar que o porquinho se cansou e voltou pra casa!’ – aliviada, dava-me a notícia. Eu, desapontada, ouvia. Almejava que o final tivesse sido feliz, não para Marivaine, mas para o porco.
O mundo seguiu. Rompeu-se mais um ano. Era como se o porco preto nunca tivesse existido. Mas ele existiu. Ah, se existiu.
Livros Indicados
Que tal conhecer um pouco da sofrência à moda antiga? Um romance do século XIX cai bem! Escolhemos três no capricho: o nosso gótico brasileiro, Álvares de Azevedo, a magnífica Júlia Lopes de Almeida, idealizadora da Academia Brasileira de Letras e Raul Pompéia, que atormentado pela juventude em um orfanato escreve sua obra-prima.
Noite na Taverna
Autor: Álvares de Azevedo
Noite na Taverna foi publicado em 1855, três anos após a morte de Alvares de Azevedo. A obra é composta por sete capítulos que incluem um prólogo, um epílogo e cinco contos que são narrados em primeira pessoa por cada um dos rapazes que estão reunidos em uma mesa de uma taverna: Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann. O local do encontro está repleto de bêbados e prostitutas e, animados pelo álcool, esse grupo de amigos decide compartilhar acontecimentos inusitados de suas vidas que levam a divagações filosóficas. Saiba mais…
O Ateneu
Autora: Raul Pompéia
Raul Pompéia foi um escritor singular no cenário literário brasileiro de seu tempo. Seu romance O Ateneu constitui uma das obras-primas da nossa literatura. Autobiográfico, o livro mostra a evolução e o amadurecimento psicológico do autor, que tem sua personalidade sensível transformada pelas experiências vividas no colégio interno. Saiba mais…
A Falência
Autora: Júlia Lopes de Almeida
A Falência trouxe a discussão de temas como o adultério feminino e a decadência econômica e moral da burguesia após a abolição da escravatura. As exaltações das personagens femininas aparecem na autonomia delas, que conseguem resolver seus conflitos sem precisar do auxílio de um homem, uma visão feminista e original para a época. Porém a decadência é associada aos personagens masculinos, que protagonizam a falência e as ações desastrosas presentes no enredo. Saiba mais…
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