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Os dias passavam lentos. Hoje, eles voam. Às vezes precisamos olhar ao redor e perceber as mudanças. Um ser humano vive pouco para acompanhar percursos longos da linha do tempo. É um sopro, um relance. As memórias são calcadas em uma escala pequena. Muitos de nós têm saudades de uma praça, um casarão, uma biblioteca. Um conforto de passado, de momentos fugidios, que se foram.
Em “Distopias urbanas“, abordamos esses lugares, que parecem trazer à tona um tempo de lentidão. Muitos desses locais resistem bravamente à especulação imobiliária e ao abandono. Boa viagem ao passado. Apreciem, leitores!
A Biblioteca Pública Sinhá Junqueira, por Kike Cárcamo
Ribeirão Preto, maior cidade do norte do Estado de São Paulo, tem imponentes construções, como o Museu Histórico de Ribeirão Preto, construído em 1874, o Palácio Rio Branco, de 1917, ou ainda o Theatro Pedro II, construído entre 1928 e 1930. No entanto, para mim, a construção antiga mais charmosa é, sem dúvida, a Biblioteca Sinhá Junqueira, casarão construído em 1932, para servir de moradia para o coronel Quito Junqueira e sua esposa, Sinhá Junqueira.
Foi por desejo de Sinhá Junqueira de deixar como herança para a cidade uma biblioteca pública que surgiu, em 1960, a Biblioteca Cultural de Ribeirão Preto que, no ano seguinte, foi transferida para o imponente casarão em que se encontra atualmente, na rua Duque de Caxias, 547, com o nome de Biblioteca Cultural Altino Arantes — sobrinho e principal testamenteiro de Dona Sinhá.
O edifício ficou interditado por um ano, em 2019, para restauração e construção de mais de 900 m² ao seu redor, criando um centro cultural com auditórios, salas de leitura e café, aberto ao público, em 6 janeiro de 2020. Em 06 de fevereiro de 2020 a biblioteca foi reinaugurada com nova denominação “Biblioteca Sinhá Junqueira” em homenagem à sua idealizadora. É importante destacar que a área da biblioteca foi ampliada, tendo atualmente 1500 m2 de área construída. Foi concebida com o conceito de “Biblioteca Viva”, inspirada nas bibliotecas de São Paulo e Parque Villa Lobos, localizadas na capital paulista.
A biblioteca dispõe de 15 salas de leitura e estudo, incluindo uma sala de obras raras, tendo no seu acervo cerca de 14 mil livros. Para pesquisas e palestras há uma sala com 30 computadores e um auditório com 50 lugares. Conta, ainda, com cafeteria e com equipamentos de acessibilidade para deficientes físicos, inclusive elevadores. Para as crianças estão disponíveis brinquedos e jogos. Há uma agenda cultural mensal, que inclui a leitura de livros e monitores contando histórias, apresentação de filmes, oferta de jornais, quadrinhos e revistas. Há um clube de leitura, todo o primeiro sábado do mês. Os funcionários editam o BSJ Cast, um podcast que apresenta entrevistas, as programações, os livros, as HQs do momento, sempre de forma acessível. Para visitas mediadas, onde se fala da história da biblioteca, é possível agendar por e-mail: atendimento@bsj.org.br.
Filme: Aquarius, por Sérgio Fernandes
“Aquarius” é um filme de 2016, dirigido por Kleber Mendonça Filho, coproduzido por Walter Salles Júnior e estrelado por Sônia Braga. Muito aclamado pela crítica, incluindo a imprensa estrangeira, esteve frequentemente no ranking entre os dez melhores filmes daquele ano. Mas o que “Aquarius” tem de tão especial? São muitos aspectos, mas vamos aos mais relevantes.
Em primeiro lugar, o enredo, dividido em três partes: “O cabelo de Clara”, “O amor de Clara” e “O câncer de Clara”. Conhecemos o passado e o presente da protagonista, a jornalista aposentada Clara, e sua conexão afetiva com o seu apartamento. O prédio, já antigo, passa a ser cobiçado por uma construtora, que pretende derrubá-lo para erigir um condomínio moderno, aos moldes das habitações de luxo à beira-mar na praia de Boa Viagem, no Recife. Não se trata de um apego infundado. Clara recusa-se a vender seu lar. Resiste porque sua memória, sua projeção individual, mistura-se com a casa repleta de seus pequenos prazeres, como a coleção invejável de discos de vinil e fotografias da família. Sofre diversas situações de assédio, mas resiste. É uma metáfora da luta entre a especulação imobiliária e o patrimônio histórico, que invariavelmente acaba sucumbindo à primeira.
Alguns temas são muito tênues, mas estão presentes. A empregada de Clara, Ladjane, mora em uma área geograficamente próxima, mas em um bairro pobre, chamado “Brasília Teimosa”. Existe uma luta de classes aí, pois analisando friamente, Clara é uma mulher burguesa que se acostumou a uma zona de conforto e não quer abandonar seus privilégios. E aí está a grande sacada do diretor: a heroína é falha, é humana. Essa humanidade da protagonista é ressaltada na doença, sendo uma sobrevivente do câncer de mama, ou na contratação de um garoto de programa para satisfazer seus anseios sexuais – crítica ao etarismo que recai sobre as mulheres.
Em segundo lugar, a trilha sonora é impecável – de Queen a Villa-Lobos, passando por Roberto Carlos e Alcione. Pode-se dizer que as músicas tocadas durante o filme são um personagem à parte. São elas que conectam o espectador à profissão de Clara, que trabalhou como crítica musical.
Em terceiro, a edição do filme privilegia os chamados takes lentos. Tem-se a impressão que a vida no edifício Aquarius passa devagar. É o contraponto ao mundo exterior, engolido pela superficialidade e pelo capitalismo. A fotografia e a caracterização do cenário e dos personagens tentam fugir do estereótipo nordestino, com sotaque forte e cores ocres ou aberrantes, tão comuns em produções do cinema nacional. Trata-se de um padrão estético mais neutro, universal – uma das razões pelo sucesso alcançado no exterior.
O desfecho é um final em aberto – sem spoiler. É uma ótima pedida para um fim de semana no qual se deseja desacelerar e apreciar um bom filme nacional. Concluo com um quote ótimo: “Toca Maria Bethânia pra ela. Mostra que tu é intenso.”
Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho (2016).
Clara (Sonia Braga) tem 65 anos, é jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos. Ela mora em um apartamento localizado na Av. Boa Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia. Saiba mais… (Adoro Cinema).
Caminhos da Liberdade, por Karine Souza e Pousas
Na minha infância, sonhava com construções inusitadas como uma casa esculpida em uma rocha. Entretanto, tive mais acesso às estruturas de ferro e concreto, que se ergueram para abrigar famílias, cuidar de pessoas ou defender ideias e ideais. Acredito que o último argumento foi o principal responsável pela criação do Palácio da Liberdade e adjacências.
Um conjunto arquitetônico para sediar os prédios do governo de Minas Gerais. Ele data do final do século XIX, junto com a construção da cidade de Belo Horizonte. Cidade planejada e erguida para se transformar na capital do estado.
Quando pequena, minha mãe me apresentou o prédio rosa e contou que era a Secretaria da Educação. Meu pai deixava que eu e minha irmã brincássemos pelos jardins da Praça. Como me sentia dona de mim nesses momentos, atravessando os gramados ou me escondendo no labirinto vivo que ficava próximo ao chafariz.
A palavra “liberdade”, na época, representava conhecer alguma criança que também brincava por ali, ou mesmo correr para pegar o ônibus em frente ao prédio Rainha da Sucata e partir para a casa de minha avó. Tudo trazia conforto para o meu coração. Mal podia imaginar quais decisões os gestores de Belo Horizonte haviam tomado para criar sua sede administrativa.
Alguns dizem que é lenda, outros preferem recontar: existia um assentamento com várias famílias que viviam no local onde seria erguido o Palácio da Liberdade. Os moradores foram desapropriados e indenizados, mas isso não significa que todos estavam dispostos a sair. Maria Papuda — nome folclórico dado a uma mulher cujo nome real é desconhecido — foi tida como bruxa e até como assombração por muitos que reproduziram o causo.
Negra, idosa, Dona Papuda criou resistência ao ser retirada de sua liberdade, de seu lar. Nesse processo forçado de desapropriação, Maria Papuda rogou uma praga dizendo que os governadores que assumissem um mandato par sofreriam um acidente no Palácio da Liberdade. Como é o costume nesse tipo de narrativa, ninguém nunca me contou se ela foi indenizada, se recebeu algum tipo de suporte ou assistência humanizada. Todos enfatizaram a história de dois governadores que atendiam aos pré-requisitos da maldição e que morreram dentro do Palácio.
Há quem diga que é apenas uma lenda urbana e quem use este argumento para mostrar o descaso com a classe pobre e marginalizada, além do racismo. Entristeceu-me pensar que a construção de uma liberdade se ergueu sem respeitar a liberdade do outro.
Hoje, o Circuito Liberdade não pertence mais à esfera política e sim à cultura. Os prédios que antes eram secretarias do estado, hoje são museus, centros culturais, escolas. Melhor assim. Essa nova roupagem se integra de forma mais harmoniosa com um dos meus prédios preferidos do conjunto: a Biblioteca Pública do Estado.
A Biblioteca foi desenhada e construída com as curvas de Oscar Niemeyer, inaugurada em 1961. Foi lá que continuei minha caminhada rumo à liberdade. Quando eu era pequena, cheiro de livro novo era como um perfume importado. Mesmo assim, para mim a fragrância mais deliciosa era a das bibliotecas. Gostava de olhar os carimbos de devolução e pensar nas inúmeras mãos pelas quais o livro que eu pegava já tinha passado.
As palavras construíam ideias tão fortes e concretas como paredes, cada livro era uma porta que descortinava um castelo de possibilidades. Encontrei o pensamento vivo de pessoas que não estavam ali. Foi lá que me inspirei e me permiti ser arquiteta de frases e também pedreira, assentando palavra por palavra até que as sentenças fizessem sentido.
A liberdade, descobri, não é substantiva e passiva. Assim como as construções que permearam meu caminho, aprendi que a liberdade é tarefa árdua, pede o ângulo certo e uma base forte. Conseguir pensar livremente, ser capaz de me expressar com autenticidade e ter cada vez mais consciência da minha atuação no mundo. O caminho é longo. Sigo com determinação. Liberdade conquistada vale a pena.
As fotos desse artigo foram tiradas por Guatasara Pousas no dia 29/05/2024. Instagram: @guata_pousas.
Na Casa de Praia, Por Cláudia Borges
Eu estive aqui desde sempre. Quero dizer, desde que a casa foi construída, nos anos 80 – feita para abrigar uma família não apenas nos meses de verão. Eles queriam ficar aqui o ano inteiro. Por isso a casa tem três quartos, sala e cozinha conjugadas. No belo alpendre eram colocadas as redes para descansarem ao balanço do vento, que no Cassino é constante. Casa toda de tijolinho à vista. Pensei, logo de cara, que iriam viver aqui, mas assim como as outras, acabou por algum tempo sendo muito usada no verão e esquecida no inverno. No verão, a alegria reinava nela, no inverno, só o vento e a chuva a maltratavam.
Eles vão e vêm. Fazem sujeira, a limpam, e ela continua à espera. No início, muitas festas. O jovem casal que se amava comemorava esse amor com amigos e familiares. Jantares, almoços, conversas fiadas, conversas sérias. Uma piscina de plástico para distrair as crianças, na qual adultos se refrescavam também. Até um sarau rolou! Bons tempos…
A alegria surgiu quando realmente a usaram para o fim desejado. Vieram morar aqui em definitivo. Primeiro o casal apaixonado. A seguir, vieram os cães, o gato, que foram o aprendizado para o que veio depois – os filhos. Os primeiros duraram alguns anos e suas mortes foram sentidas e sofridas pela família, que os enterrou no quintal e plantou flores em homenagem a eles. Algumas fotos ficaram nas paredes – como membros ausentes da família.
Os filhos cresceram e se foram. Voltam de vez em quando, no verão, por um ou dois dias. Quando vão embora, vejo a tristeza nos olhos da mãe, andando pela casa sem muito o que fazer, a conformidade do pai que volta às suas atividades ‘normais’ de antes das visitas. Não quiseram outros animais, a dor da perda era muito grande para que se abrissem a outras vidas.
Esperaram os filhos em 2020, mas nesse ano não veio ninguém, desde março. A ausência foi sentida pelo casal. As doenças já existentes, com a idade, se agravaram ou novas apareceram. Uma tal de pandemia surgiu no mês que finda o verão. Tudo fechou e os filhos não viriam de qualquer forma, entristecendo ainda mais aquele casal castigado. E assim a tal pandemia os venceu. Primeiro ela morreu da doença, depois ele, de tristeza, pela solidão sentida.
Nem sei se os filhos foram ao enterro. O caixão dela, fechado, o dele, o mesmo, por precaução. Quase ninguém foi se despedir. Apenas o amigo de chimarreadas, vizinho da esquina, que conversava com o casal todos os dias pela manhã, sentiu a falta depois que ambos se foram.
Hoje, transcorridos dois anos, os filhos vieram, discutiram, levaram alguns pertences. Jogaram outros no lixo. Vi, tenho certeza, uma placa de “Vende-se”!
Sinto falta do jovem casal. Sou um mero tijolinho à vista. À vista de todos percebi o abandono e a dor desses dois. Eu e os outros tijolos presenciamos uma história de amor pela vida, pela amizade, ser esquecida.
O prédio do Namoa Polastrini Hotel – Itanhaém – SP, por Fernando Buzzetto
A Estrada de Ferro Sorocabana, inaugurada em 1875, tinha a função de escoar o algodão e o café de São Paulo até o porto de Santos, com uma malha ferroviária que contemplasse os polos produtores. Assim, a Baixada Santista desenvolveu-se, prosperando no entorno da ferrovia. Com a desativação de vários ramais ferroviários em 1977, e a subsequente substituição por rodovias, diversos casarões que contavam a história do apogeu econômico da Baixada deixaram de existir, cedendo espaço a construções modernas.
Felizmente, a cidade de Itanhaém conseguiu manter muitas construções antigas, com a praça central rememorando a cidade antiga. Há um prédio, na Boca da Barra, onde o rio Itanhaém deságua no mar, que destaca-se na paisagem (Figura 1).
Há lacunas no registro da história da construção, mas sabe-se que durante o período da República do Café-com-leite (1898 – 1930) o local recebia políticos e celebridades da época. Em 1909 e 1911, Washington Luís, presidente da República entre 1926 a 1930, mas na época Secretário Estadual de Justiça e Segurança Pública, hospedou-se no casarão.
Nélio Polastrini, proprietário do imóvel, percebeu a carência de rede hoteleira na região. A partir de 1938, passou a funcionar como um hotel. Atualmente, conserva o nome da família fundadora – Namoa Polastrini Hotel.
Dentre os ilustres hóspedes das décadas de 40 e 50, destaca-se a pintora modernista Anita Malfatti (1889 – 1964). Entre os anos de 1932 e 1952 a pintora instalou seu ateliê no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Costumava passar alguns dias de verão em Itanhaém, hospedando-se no Polastrini. Infelizmente, pouco do conjunto arquitetônico desse período se preservou (Figura 2).
Durante as gravações da primeira versão da novela “Mulheres de Areia”, exibida pela extinta TV Tupi de março de 1973 a fevereiro de 1974, o elenco composto por Eva Wilma, Carlos Zara, Gianfrancesco Guarnieri dentre outros, também hospedou-se lá. Era a nata dos atores nacionais.
No presente, com o advento de hotéis de luxo e balneários badalados no litoral norte de São Paulo, como Maresias, o glamour já não é mais o mesmo dos áureos tempos. Entretanto, o Polastrini continua sendo um importante polo cultural de Itanhaém. Boa parte da arquitetura permanece intacta (Figura 3).
Mesmo com a especulação imobiliária que assola as regiões litorâneas do Brasil, o Namoa Polastrini Hotel segue vivo. Ainda é possível desfrutar de uma hospedagem à moda antiga. No mês de julho o hotel sediará a Feira Literária de Itanhaém, durante os dias 20 e 21. Será a casa dos livros. Anita Malfatti e todos os artistas que por lá passaram sentir-se-iam representados.
Palavras a Ermo, por Stéfani Quevedo
No frigir dos ovos
Ao sabor do tempo
Um dia recanto
No outro recôndito
Abrigo de célebres histórias
Não passa de depósito
De lixo ou luxo.
Arquitetura urbe
Fadada ao esquecimento
Tudo se faz pó
Tal qual como se originou
Na poeira de um sonho
Tombou-se?
Quiçá ruiu.
Sobreviver
Nas sombras de uma lembrança
Que teima
Apesar da modernidade
Que a liquefaz.
A obsolescência
Corrói as entranhas
Do velho casarão
Da padaria
De uma grande pensão.
Grandes prédios
Sem licença
Ou cortesia
Por ali passam a reinar.
Memória ou inovação?
Cultura faz-se costura
Expõe velhas chagas
Ensina para expurgar
Anseia nos quatro cantos do Brasil
Por olhos que não enxergam
Mas que, ao estarem fechados
Sintam
Na parede de cada reminiscência
O pulsar das veias
A lembrança que ali reside
A história que por lá
Faz morada.
A anciã Pasárgada de Bandeira
Resiste
À espreita
Nas ruínas
Cascas de tinta
No baldio pensamento
De quem luta
Salvaguarda
Recordações tupiniquins.
O Homem dos Trilhos do Trem, por Daiane Carrasco e Cristiano Landgraf
Dia 23 de maio de 2024. Chovia. Assim como há três semanas antes desse dia. Encontrei-me com um amigo, Cristiano Landgraf. Ambos entusiastas das velharias, das fotos amareladas em preto e branco, das ruínas. Batemos palmas em frente ao portão da modesta casinha de madeira, próxima à rótula da Junção. Abriu-nos a porta um senhor negro, baixinho e de fisionomia agradável. Assis Lismar Pereira Mendes, ou simplesmente Seu Assis.
Morador da casa desde 1976, funcionário da Rede Ferroviária Federal (RFF), mudou-se para Rio Grande oriundo de Jaguarão, onde trabalhava na manutenção dos trilhos do trem. Passou a exercer a mesma função, mudando-se então para a casa que parece congelada no tempo. Aposentou-se no final da década de 80.
O homem dos trilhos do trem tem sua vida atrelada à casa de madeira. Uma simbiose. É possível perceber na fala de Seu Assis as tentativas de mudar-se. Pretendia viver com uma das companheiras em outra casa, construída por ele, mas o relacionamento acabou e a mulher acabou ficando no imóvel. Tentou reaver uma antiga herança, mas também não foi feliz na empreitada.
A casa é um personagem. Testemunha silenciosa dos apitos das locomotivas que não gritam mais. Teria vindo inteira de Cruz Alta, no início do século XX, por volta de 1905. No passado, havia outras casas, igualmente destinadas a funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, que posteriormente converteu-se em RFF.
Seu Assis está lá com seus quase 80 anos. Mesmo sem saber, contribuiu para preservar parte da memória da cidade. O acervo da Viação Férrea tem pouquíssimas fotos da malha ferroviária que passava por Rio Grande. Documentos, testemunhos, também são raros. Mas eu ouvi suas histórias, como nos anos em que ficou sem tirar férias e que não lhe pagaram o que deviam, ou quando era chamado a reparar os dormentes não importando o horário do expediente. É o eterno ciclo da exploração da mão-de-obra, com muitos deveres e poucos direitos.
Infelizmente, os anos castigaram os simbiontes: seu Assis e a casa. Sozinho, o homem não tem como operar os reparos que uma residência dessa idade e natureza exigem. A casa, inclinada pelos anos e com o assoalho instável, já não oferece tanto conforto como nos áureos tempos, em que serviu de morada para uma família numerosa, com sete filhos.
Cristiano e Eu registramos essa visita, na esperança de que outros apaixonados pelo Patrimônio Histórico tenham acesso a essa história e repitam o gesto, numa onda de resistência. Modernidade e lucro impulsionam a economia e melhoram a vida dos cidadãos. Entretanto, uma sociedade necessita de seus redutos de memórias coletivas, das lembranças do lugar de onde viemos. Caso contrário, nunca saberemos para onde vamos…
Os registros fotográficos do dia da visita. Fotos tiradas em 23/05/2024, por Cristiano Landgraf.
Livros Indicados
Nesta edição, os livros recomendados são de grandes poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto. Embriague-se com as poesias dos gigantes!
Libertinagem – Autor: Manuel Bandeira
Alguns poemas deste livro foram anteriormente publicados em revistas do movimento modernista de 1922 como estética, Klaxon e Revista do Brasil.
Com efeito, em Libertinagem é possível captar a sedimentação do papel central exercido por Manuel Bandeira nesse movimento que tanta importância teve em nossa literatura. Também um tom de “brasilidade” ecoa em poemas como “Mangue”, “Belém do Pará” e “Evocação do Recife”, traço característico das mais importantes manifestações literárias dos anos 1920. Saiba mais…
A Escola das Facas/ Auto do Frade – Autor: João Cabral de Melo Neto
A escola das facas, livro que abre o volume, é considerado um marco em sua poesia. Publicado em 1980, enquanto o autor ocupava o posto de embaixador no Equador, apresenta 44 poemas que falam de Pernambuco, com suas paisagens de coqueiros e canaviais, seus engenhos, seus personagens políticos e figuras históricas. São poesias que retomam os temas consagrados de Cabral – o rio, o sertão, o povo e o canavial. No entanto, o poeta, ao recontar antigas memórias de criança, pela primeira vez se coloca como personagem. Em Autobiografia de um só dia, por exemplo, ele imagina seu nascimento; em “Prosas da maré na Jaqueira”, versa sobre o Capibaribe da infância; em “Descoberta da literatura”, fala de seu contato com a literatura de cordel, ainda menino, quando lia as histórias em voz alta aos empregados do engenho. Em Auto do frade, publicado quatro anos mais tarde, Cabral narra o momento em que Frei Caneca, ou frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, figura proeminente da Revolução Constitucionalista de Pernambuco, de 1824, é levado à execução. “Que ninguém se aproxime dele./ Ele é um réu condenado à morte./ Foi contra Sua Majestade,/ contra a ordem, tudo que é nobre.” Saiba mais…
Poema Sujo – Autor: Ferreira Gullar
Publicado originalmente em 1976, Poema sujo transformou a paisagem da poesia brasileira com sua torrente arrebatadora de versos, expressão máxima de uma subjetividade convulsa pela atmosfera sufocante da ditadura. O poema foi escrito na Argentina, onde o autor se encontrava exilado. “Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”, escreveu Gullar. “Imaginei que poderia vomitar, em escrita automática, sem ordem discursiva, a massa da experiência vivida – lançar o passado em golfadas sobre o papel e, a partir desse magma, construir o poema que encerraria a minha aventura biográfica e literária.”. Saiba mais…
Playlist Nacional – Distopias Urbanas, por Daiane Carrasco
Esta é uma playlist distópica e caótica! Escolhi as nacionais que têm algo a dizer neste mundo superficial e fútil em que muitas vezes nos conformamos, engolimos a seco e vamos vivendo. Põe pra tocar!
Confisco – Charlie Brown Júnior (Alexandre Magno Abrão/ Luiz Carlos Júnior Leão Duarte/ Marco Antônio Valentim Júnior Britto/ Renato Peres Barrio/ Thiago Raphael Castanho). Justiça seja feita: Chorão era um exímio compositor, ainda que os puristas o rejeitem. Os gringos descobriram “Confisco”: foi escolhida como trilha sonora de um game para os amantes de skate, o Tony Hawk’s Pro Skater 1+2. A letra é um manifesto dos excluídos: relata a execução de uma ordem de despejo. É o diálogo entre o oficial de justiça e o despejado. Sensacional!
Rodo cotidiano – O Rappa (Marcelo Lobato/ Marcelo Falcão Custódio/ Lauro José de Farias/ Alexandre Menezes/ Marcos Lobato). Um verdadeiro hino! Retrata a dura batalha diária dos trabalhadores que se deslocam de transporte coletivo até seus respectivos locais de trabalho. Escolhi essa versão com a Maria Rita porque é cinco estrelas! A música acaba, mas o povo continua cantando! Energia que chega até o Universo!
Qual é?! – Marcelo D2 (Antônio Carlos Marques Pinto/ José Carlos Figueiredo/ Marcelo Maldonado Peixoto/ David Corcos). Tudo aqui é bom: a letra, a batida, a cadência, o videoclipe. É um Brasil criativo, pulsante. “Sem sorte no jogo, feliz no amor/ Quem nasceu na malandragem não quer ser doutor/ Há 500 anos, essa banca manda à vera/ Abaixou a cabeça? Já era!” Uma obra de arte contemporânea!
Núcleo Base – Ira! (Edgard Scandurra). Música lançada em 1987. O Brasil estava saindo da Ditadura, rumando para a redemocratização. Corajosamente o Ira! grava essa canção que critica o alistamento militar obrigatório! “Eu tentei fugir, não queria me alistar. / Eu quero lutar, mas não com esta farda.” Distopia total! Viva o rock nacional!
Elefante Branco – Tigres de Bengala (Vinicius Cantuaria/ Evandro Mesquita/ Richard David Court). Tigres de Bengala foi um projeto musical dos anos 90 que incluía músicos consagrados, como Ritchie (prova de que ele é muito mais do que “Menina Veneno”!), Cláudio Zoli e Vinícius Cantuaria. A música é uma reflexão sobre a brevidade da vida. “E tudo o que a gente não fez/ E agora lamenta/ Por que você não tenta? Por que não experimenta?” Tem como não amar?!
Um dia – Cidadão Quem (Duca Leindecker). Dizem que os artistas gaúchos estão exilados em seu próprio país. Posso dizer que é um pouco verdade. Existe até uma subcategoria de rock, chamada “rock gaúcho” porque as músicas tocam em rádios do RS, mas não conseguem furar a bolha e atingir outros públicos. É o caso da banda Cidadão Quem. As canções são lindas, porém pouco conhecidas. “Ando sozinho pelas ruas/ Nas esquinas de qualquer lugar/ Vejo um menino/ Velho pássaro/ Que não se cansa de voar.” Duca é um poeta, meu povo!
Ilê Pérola Negra – Daniela Mercury (Guiguio). Sem dúvida, a melhor música da carreira de Daniela. Traz uma ancestralidade negra muito necessária a um país como o nosso, com um racismo estrutural difícil de romper. O videoclipe também é lindo, com uma fotografia em tons pastéis.
Carnavália – Tribalistas (Antônio Carlos Santos de Freitas/ Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho/ Marisa de Azevedo Monte). Essa música é a nata do que o Brasil tem de melhor: ritmo envolvente, um arranjo impecável e uma letra que dispensa comentários. “Repique tocou/ O surdo escutou/ E o meu corasamborim/ Cuíca gemeu/ Será que era eu/ Quando ela passou por mim?” É isso o que acontece quando juntamos Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Marisa Monte, meu povo!
Ali – Skank (José Fernando Gomes Reis/ Samuel Rosa de Alvarenga). Com estrofes e versos que simulam a confusão mental de alguém que se descobre apaixonado, essa música nos traz reflexões. A primeira é sobre o uso da linguagem. A Língua Portuguesa é como aquela maleta de ferramentas, mas que se não soubermos usar torna-se inútil! Samuel Rosa e Nando Reis fizeram um trabalho incrível! Peguem a letra e leiam! É dez! A outra é sobre a insegurança masculina, tão pobremente retratada na cultura brasileira em geral, mas esmiuçada de modo poético nessa canção. Por tais motivos, merece um posto entre as distópicas!
Maracatu Atômico – Chico Science e Nação Zumbi (Nelson Jacobina/ Henrique George Mautner). Chico Science foi uma inteligência superior que ficou pouco tempo conosco e voltou. Ele revitalizou a canção de Jacobina e Mautner com excelência. A beleza de “Maracatu atômico” é resultante da mistura do rock com o maracatu e da letra que faz um jogo inteligente de palavras, com repetições que sempre acrescentam uma informação a mais: “O bico do beija-flor, beija a flor, beija a flor/ E toda a fauna-flora grita de amor.” O clipe mostra Chico caracterizado como caboclo de lança, lindo de se ver! Nada mais formoso do que isso para encerrar a playlist!
Playlist Internacional – Distopias Urbanas, por Daiane Carrasco
Literato Dente-de-leão traz uma playlist distópica, com músicas de uma vibe diferente, que fogem do que costuma tocar nas rádios. Escolhi novinhas e velhinhas no jeito!
Sacred the thread – Greta van Fleet (Daniel Wagner/Dave Cobb/ Jacob Kiszka/ Joshua Kiszka/ Samuel Kiszka). O título literalmente quer dizer “O fio sagrado”. Josh Kiszka compôs essa letra originalmente referindo-se aos seus “jumpsuits”, os trajes coloridos e justos com os quais gosta de se apresentar. A voz gigante de Josh e a guitarra de seu irmão gêmeo, Jake, dão um ar místico à canção. Eu a elegi como a trilha sonora do meu protagonista, o Ozzy. “O brilho que antes era fraco/ Eu vi nas estrelas/ Para vestir as feridas, curar as cicatrizes.”
One more cup of coffee – Bob Dylan (Bob Dylan). Uma obra de arte! A letra melancólica sobre a despedida de um relacionamento sem futuro, expressada por “mais uma xícara de café”, e o arranjo que lembra uma música cigana, fazem a gente agradecer pela mente brilhante desse gênio.
Elephant gun – Beirut (Zach Condon). Famosa como a trilha sonora da minissérie “Capitu”, dirigida por Luiz Fernando de Carvalho e exibida pela Globo em 2008, é uma dessas canções que tocam fundo. As “armas para elefante” são usadas para abater elefantes, claro. Mas que elefantes são esses? É a metáfora dos sonhos que vamos abandonando durante a vida. Profunda demais…
Build – The Housemartins (Ian Peter Cullimore/ Paul Heaton). Conhecida como “melô do papel”, por conta da repetição do “bã-bã-bã-bã-build” que soa como “pa-pa-pa-pa-pel” no refrão, é uma canção de vanguarda. Lançada na década de 80, aborda a necessidade que o homem tem de construir: uma casa para morar, uma estrada para percorrer, enfim… Ressalto: em um tempo no qual as bandas não tinham ativismo! Vale a pena conhecer!
Take me home – Concrete Blonde (James Mankey/ Johnette Napolitano). Uma pérola do rock! “Então, não chore… vai deixar rugas ao redor dos seus olhos. Tente não viver a vida tão sozinho. E se eu ver você ficar louco pelo fundo da garrafa, eu vou te levar para casa.” A guitarra parece estremecer à tristeza da vocalista Johnette Napolitano, que compôs a letra em um desabafo sobre a sua luta contra o alcoolismo. A música nos transporta para o universo poético dessa grande artista.
If love is the law – Noel Gallagher’s High Flying Birds (Noel Gallagher). Um British rock com direito à gaita de boca e tudo! “Eu navego em mares tempestuosos/ mas não consigo encontrar a costa.” Ah, Noel… Nós te oferecemos nosso cais!
The passenger – Iggy Pop (James Newell Osterberg/ Ricky Gardiner). Clássico atemporal do mestre Iggy Pop. É aquela música convidativa. Dá vontade de pegar o carro na madrugada e sair dirigindo sem rumo enquanto a cidade dorme. Apreciem com moderação, a gasolina está cara!
High and dry – Radiohead (Colin Charles Greenwood/ Edward John O’Brien/ Jonathan Richard Guy Greenwood/ Philip James Selway/ Thomas Edward Yorke). O título “Alto e seco” é uma figura de linguagem que em inglês equivale a “desamparado, abandonado.” Apesar de a banda ter ficado mundialmente conhecida por “Fake plastic trees”, “High and dry” é mais suave, bonita, leve. Põe para tocar e aproveita essa belezinha!
Mercy Street – Peter Gabriel (Peter Gabriel). Trata-se de um poema de Anne Sexton, uma poetisa norte-americana que travou uma longa batalha contra a depressão, até suicidar-se em 1974, aos 45 anos. Peter Gabriel levou cerca de seis anos para concluir essa música! Ele queria musicar o poema com alma e dignidade. E conseguiu! O curioso é que o instrumento que dá cadência à música é um triângulo, muito tradicional na cultura nordestina.
La Pachanga – Vilma Palma e vampiros (Jorge Fernando Risso/ Mario Federico Gómez Madoery). Meu povo! Um rock argentino para animar! “La pachanga” significa “a festa”. O interessante é o ponto de vista do argentino sobre uma noitada animada: “Os meninos reclamam se a noite não for longa. As meninas vão embora se o vinho tinto acabar.” Uau! Essa era carimbada nas festinhas anos 90.
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