Edição 08 – Os Novos Imigrantes – Março 2024

Edição 08 – Os Novos Imigrantes – Março 2024

Filme: O Tradutor | Resenha do livro Os Deuses de Raquel | Violência Baseada no Gênero | Brasileiro de Coração | Turismo de Parto | Brasil Exportação | Gringo Influencer | Conto: Açores E Angola | Livros Indicados | Corpo Editorial | Escritores da Edição

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Introdução, por Daiane Carrasco

Lucio Dalla, em sua bela canção intitulada “Caruso”, canta esses versos (que traduzi para o português):

“Um homem abraça uma garota depois de ter chorado
Depois limpa a sua voz e começa a cantar:
Te quero bem demais
Mas tanto tanto bem, sabes?
É uma prisão já
Que dissolve o sangue dentro das veias
Viu as luzes no meio do mar. Pensou nas noites da América
Mas eram só as lâmpadas e a faixa branca de uma hélice
Sente a dor da música ao levantar-se do piano
Mas quando viu a lua sair de uma nuvem
Até a morte lhe pareceu mais doce.”

A angústia da separação, a saudade da pátria que fica para trás –são temas universais dos grandes romances, do cinema, das canções. Assim como manadas que cruzam quilômetros em busca de recursos para a sobrevivência, também os seres humanos migram. Tornam-se imigrantes ao cruzarem as fronteiras de seus países de origem, seja em busca de um futuro melhor ou simplesmente por uma curiosidade, uma mudança de vida.

Nesta edição, abordamos alguns tópicos contemporâneos sobre o fenômeno da imigração – interculturalidade entre povos, a jornada daqueles que escolheram o Brasil para viver e os Direitos Humanos. Esperamos suscitar a reflexão de que vivemos numa grande aldeia global e que empatia e solidariedade devem nortear nossas ações no âmbito individual e coletivo, na forma de políticas públicas inclusivas.

Boa leitura!

Filme: O Tradutor, por Daiane Carrasco & Sérgio Fernandes

Nesse filme emocionante, sentimental, e baseado em uma história real, um professor e sua família são colocados à prova quando ele foi chamado para ser tradutor espanhol/russo em um hospital de Cuba na ala infantil. Eram pacientes vítimas da radiação do acidente de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986. A antiga União Soviética, sem condições para oferecer tratamentos às vítimas, envia os pacientes para Cuba.

Rodrigo Santoro entrega uma atuação comovente na pele no professor Malin, pai dos diretores Sebástian e Rodrigo Barriuso. Santoro fez uma imersão minuciosa nas culturas cubana e russa, além de ter conversado com o verdadeiro Malin. Foram mais de dez horas diárias trabalhando em cima do roteiro, falado em russo e espanhol. Segundo o próprio: “Não basta decolar as falas. Tem que saber o que está sendo dito e ouvido para que a atuação seja real, com sentimentos, emoções e reações.”

Malin é casado com Isona (Yoandra Suárez), que trabalha com arte. Ambos têm um filho na mesma idade dos pacientes com o qual interage. É uma contradição: professor, focado em suas aulas, em sua vida acadêmica, mas que negligencia sua família. O professor, que detesta hospital, passa por uma autotransformação através daquelas crianças e repensa suas relações interpessoais.

À medida que o interior de Malin vai se modificando através da dor daquelas pequenas vidas expostas à radiação, Cuba também se transforma: o mundo passa pela Guerra Fria. Fidel Castro declara apoio à perestroika de Mikhail Gorbatchov. O país passa pela intensificação do bloqueio comercial norte-americano. Há escassez de quase tudo: comida, combustível, constantes apagões de energia elétrica, reduções ou cortes salariais.

Em meio ao turbilhão de acontecimentos, Malin tem uma aliada – a enfermeira Gladys, que trabalha diretamente com ele, provocando-o a profundas reflexões, incutindo ânimo e força no protagonista. Destacam-se os atores mirins do filme, conferindo carisma e sensibilidade ao drama retratado no filme.

Vale a pena assistir “O tradutor”. É um belo longa-metragem do cinema cubano. Retrata de modo muito humano as consequências do desastre de Chernobyl, as dores intensas dos personagens, a superação e a coragem de Marlin. Ironicamente, o professor não ensinou, mas aprendeu. Às vezes, com duras lições, a vida ensina.

É um filme cubano de 2018, do gênero drama, dirigido Rodrigo Barriuso e Sebastián.

Quando os sobreviventes do desastre de Chernobyl chegam a Cuba para tratamento médico, um professor (Rodrigo Santoro) local de literatura russa é obrigado a atuar como tradutor.

A obra foi selecionada como representante de Cuba na tentativa de uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro na edição de 2020.

Não recomendado para menores de 12 anos. Se interessou? Saiba mais sobre o filme.

Resenha do livro Os Deuses de Raquel, de Moacyr Scliar, por Marcelo Elo Almeida

O livro narra a história de Raquel, filha de imigrantes húngaros de origem judia, egressos da Europa da década de 1930, prenhe de perseguições anti-semitas. Ela cresce num bairro afastado de Porto Alegre, o Partenon, sede de um hospício e de uma escola de freiras, onde ela é matriculada, a despeito da sua origem judaica. Por todas as metáforas, elementos subliminares e não ditos do texto, é um desafio interpretativo para todo leitor. E tem um componente especial: o narrador é o próprio Deus. Do alto, a história vai sendo narrada sem pudores para com os momentos mais íntimos ou os defeitos mais inconfessáveis da protagonista. Afinal, é Deus quem narra, Aquele que tudo pode.

Sua sexualidade, suas mais simples irritações, seus ataques de egoísmo, sua perversidade com Beatriz, aluna judia como ela, perseguida e manipulada devido à sua condição – nada escapa ao olhos Dele. Miguel, um outro onipresente, mais carnal, judeu também e funcionário da loja da qual ela se tornará proprietária, está sempre ao alcance ou em seu encalço. Amor ou obsessão, o fato é que Miguel, já tendo passado algumas temporadas no hospício do bairro, está sempre por perto. No início, um protetor; depois, um estorvo para a adulta Raquel.

Raquel cresce com poucas amigas, poucos parentes, um único amante. Num bairro pouco povoado, afastado do centro, sua vida é como uma ilha cercada por um mar seco. Num dado momento, ela adota o catolicismo, ou melhor, a devoção à Virgem Maria, aquela que “contempla Raquel com seus grandes olhos escuros”, como o Deus narrador. Uma afronta ao seu pai ou ao Pai hebraico?  Isolada social e mentalmente, ela não escapa nem do narrador, nem do funcionário protetor. E sabe disso, está sempre percebendo uma presença invisível nos momentos mais corriqueiros. Escapa do mundo, escapa das pessoas, mas não escapa daquela impressão de constante observação. Seus pecados volta e meia vêm à tona, seja a traição à amiga, sejam as pequenas falcatruas, emergindo do inconsciente em forma da vigilância onipresente, sua própria consciência.

Uma filha de imigrante que não pratica o judaísmo, por um certo tempo devota de Maria sem ser católica. Muitos deuses para uma só alma, Raquel é alguém que se isola das pessoas e da sociedade, como um enclave migratório tão presente até a algum tempo no sul do país. A herança cultural diversa e uma sensação de não pertencimento ao mundo tornam a protagonista estrangeira em sua própria terra. O mundo é um lugar estranho, inóspito e violento. E a Coluna da Eternidade, imagem que lhe é apresentada numa peça de teatro na escola de freiras, a julgá-la do alto: seus pecados condenando-a ao inferno, seja ele em Roma ou Jerusalém. As religiões aparecem como elemento que instigam a culpa e a não-aceitação de si mesmos, transformando seres em emigrantes de sua terra e de sua vida. Afinal, os deuses de Raquel são um só, tradição judaico-cristã de controle mental e comportamental.

Romance curto e complexo, com densidade elevada de imagens, ideias e sentimentos, “Os Deuses de Raquel” é uma história que desnuda o íntimo da protagonista, sem heroísmos, apenas humanidade, que é profícua de desejos, sonhos, defeitos e qualidades.

Ferenc Snezes é um judeu húngaro, professor de latim e oriundo de uma família rica. O dinheiro que herdou do pai foi-se num desastrado projeto de uma Escola de Altos Estudos de Língua Latina. Apesar de a sua mulher preferir a Europa, Ferenc vem para o Brasil, recomeçar a vida em Porto Alegre. Tenta o ensino latinista, mas acaba dono de uma ferragem. Assim começa a existência de Raquel, filha de Ferenc: do bairro Partenon ela vê a vida, ouve murmúrios, conhece Miguel – o estranho Miguel –, tem premonições, é diferente, trágica. Numa atmosfera onírica, esta história se desenvolve entre a realidade e o sonho, entre demônios e deuses. Escrito na década de 1970, Os deuses de Raquel traz a marca do grande ficcionista Moacyr  Scliar, autor  de  uma  obra  tão vasta  quanto consistente, traduzido na Europa e nos Estados Unidos e considerado um dos maiores romancistas especialistas em temática judaica do mundo. Ele próprio filho de imigrantes judeus vindos da Europa, Scliar se tornou conhecido por retratar na literatura as aventuras e dramas destes imigrantes no Brasil, como se vê em Os deuses de Raquel e Max e os felinos. – Saiba mais…

Violência Baseada no Gênero – um Problema Complexo de Solução Única, por Gabriel Gualano de Godoy

Gabriel Galano de Godoy é Representante do Alto-comissariado das Nações Unidas para Refugiados na Macedônia do Norte.

Todos os anos, no dia 08 de março, a comunidade internacional está unida para reafirmar nosso compromisso com as mulheres e meninas, e com o gênero feminino. O Dia Internacional da Mulher oferece-nos uma plataforma para recordarmos e homenagearmos as vítimas passadas e presentes da violência de gênero para aumentarmos a sensibilização sobre o tema, prevenindo a ocorrência de novos casos.

Houve um aumento significativo no número de pessoas que fogem de perseguições em todo o mundo, incluindo violência sexual e de gênero. Dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) mostram que atualmente 114 milhões de pessoas estão deslocadas à força, sendo 51% deste montante de mulheres e meninas, ou seja, cerca de 58 milhões.

Quando acrescentamos também o fato de que 75% dos refugiados são acolhidos por países em desenvolvimento, ou por economias periféricas, que muitas vezes não dispõem de recursos suficientes para prestar o apoio necessário, somos então surpreendidos pela dura realidade – as mulheres e meninas refugiadas não só estão mais expostas à violência e ao abuso, mas, ao mesmo tempo, têm menos acesso a serviços de assistência e proteção.

É crucial lembrar os desafios que as mulheres deslocadas à força enfrentam. O deslocamento muitas vezes traz riscos incalculáveis ou difíceis de perceber. Dados recentes apontam que o risco de violência entre parceiros íntimos é de 20% para estas mulheres. A violência de gênero pode ocorrer em qualquer momento da deslocação, antes ou durante a fuga, e quando chegam a um país seguro. Durante estes períodos, as mulheres podem ser separadas de suas famílias, sem acesso a serviços de saúde reprodutiva e a necessidades básicas, incluindo abrigo. Tais fatores aumentam o risco de elas experimentarem as mais variadas formas de violência, e são razões para fugirem. É importante mencionar que violência sexual e de gênero constituem motivo para o status de refugiado.

A violência baseada no gênero traz muitas consequências para os indivíduos e suas famílias, e a maioria delas perdura bastante tempo, causando danos à saúde física e mental, assim como ao bem-estar psicossocial. Adicionalmente, podem surgir o estigma social e a rejeição, o que leva à subnotificação deste tipo de violação dos direitos humanos.

Na Macedônia do Norte, o ACNUR presta assistência técnica às autoridades locais, garantindo que mulheres e meninas refugiadas e apátridas tenham acesso a mecanismos de proteção especializados, independentemente de sua origem ou status. Com a colaboração de parceiros, são oferecidos assistência jurídica gratuita e apoio psicossocial oportuno, numa língua que possam compreender, através de advogados, psicólogos, assistentes sociais e intérpretes qualificados.

As mulheres refugiadas e apátridas devem ser plenamente incluídas nas políticas e serviços públicos, sem discriminação. Nossa Agência renova o seu compromisso de reduzir e mitigar o risco de violência de gênero na nossa região, através de intervenções organizadas em parceria com comunidades, ONGs, interlocutores governamentais e populações anfitriãs, sempre olhando através das lentes da idade, do gênero e da diversidade, empregando abordagens baseadas na comunidade, centradas nos sobreviventes e baseadas nos direitos.

Devemos trabalhar todos os dias para apoiar a igualdade de gêneros e para capacitar mulheres e meninas em amplos contextos, incluindo as refugiadas a apátridas. É hora de transformar o impulso em ação, para garantir que as mulheres e meninas sejam ouvidas e possam ter as mesmas oportunidades. Investir na proteção e inclusão de mulheres deslocadas à força e apátridas é um imperativo dos Direitos Humanos.

Refúgio e Hospitalidade
José Antônio Peres Gediel
Gabriel Gualano de Godoy

Esse livro é um compêndio sobre políticas públicas e direitos humanos.

Disponível em PDF no site: acnur.org, e pode baixar clicando aqui ou na imagem do livro ao lado.

Migrações – Políticas e Direitos Humanos sob as Perspectivas do Brasil, Itália e Espanha
Coordenadores: Caroline Proner, Estefânia Maria de Queiroz Barboza E Gabriel Gualano De Godoy

Parte desta obra está escrita nas Línguas Espanhola e Inglesa.

[…] os diversos autores que escrevem neste livro analisam os distintos aspectos dos fluxos migratórios contemporâneos, abordando questões cruciais como a relação entre imigração e direitos humanos, a necessidade premente de revisão e a gestão de políticas migratórias para que sejam legítimas e eficazes.

O direito a migrar em um mundo em permanente movimento é discutido como um direito elementar, a ser considerado no processo de positivação e internacionalização das normas que regem as relações entre os Estados. Pensar a imigração é uma tarefa a ser cumprida com um olhar descolonizador, em uma perspectiva intercultural que tenha como ponto de partida os direitos humanos. Saiba mais…

Brasileiro de Coração, por Marli Marlene Hintz

Entre matar ou morrer, a história de um militar que se tornou professor em Candelária – RS.

— O que se faz numa guerra? — perguntou-lhe um menino no cais, aonde o navio atracara para o abastecimento.

— Mata-se ou morre-se! — respondeu-lhe o militar, orgulhoso da sua farda.

— E isso vale a pena? — questionou-lhe outra vez o garoto com traços indígenas e olhos verde mar.

Impertinente questão, trazida por uma criança, mas que há algum tempo lhe importunava nas noites solitárias, no quartel.

“Como seria ter uma vida normal?” Sair para um trabalho sem ver o constante sangue jorrando. Ter a certeza de retornar todos os dias para receber o carinho da esposa e o abraço dos filhos. Produzir algo que não fosse a morte.

Exausto de pensar sobre aquilo, retornou ao navio. Deitou-se na cama, bem mais confortável do que aquelas que, há muitos anos, trouxeram os imigrantes para aquele país: a Argentina. Em uma semana seguiriam rumo ao Japão. “E de novo matar ou morrer”, repetiu para si.

Levantou-se, apanhou sua arma. Olhou para suas medalhas na farda. “Que direito têm os reis, imperadores ou presidentes de estabelecer uma guerra, nas quais seus filhos não participam, apenas repartem entre si os despojos e os lucros, caso seus soldados vençam a guerra?” Largou o instrumento que lhe ardia como urtiga nas mãos. Olhou para o seu violão. Estranhamente, seus dedos travavam. De farda, nunca conseguia tocar. Retirou-a, vestindo uma roupa bem simples. Voltou ao cais. Cantou para uma gaivota, que planava para aonde quisesse. “Isso, sim, é liberdade”, pensou, andando a esmo pela praia.

Se foi assim que Georg Anger tomou a decisão de desertar do exército, nunca saberemos.  O que sabemos era que partira da Alemanha, fatigado pelas opções entre matar ou morrer e que pegou o violão, levando-o sem destino pela orla marítima. Seguia em direção ao Uruguai. E assim vagueou por dias e dias, só com a roupa do corpo e um violão. Deslocava-se pela praia, desejando que as marés apagassem seus rastros, a fim de que nunca mais o encontrassem. E nesse peregrinar, sem certeza de onde iria parar, passaram-se semanas e meses.

Quando a fome apertava, buscava algo no mar que pudesse comer. “Agora é (sobre)viver”. Quando via alguma casa, chegava! Oferecia suas cantorias em troca de um prato de comida e um pouso que podia ser no galpão. Na manhã seguinte, partia!

E desse jeito foi andejando, andejando, até encontrar a antiga rota dos tropeiros. Despediu-se do mar e por ela seguiu. Caminhou, caminhou, chegando ao Quilombo, uma localidade no Distrito da Costa da Serra. Quando viu a bela Marta, enamorou-se. Enfim! Uma esposa para lhe aguardar no retorno do trabalho. Tornou-se professor. De algo lhe servira aprender o português. Casou-se!

Terminada a I Guerra Mundial, bem estabelecido e com sua própria família, após alguns anos, enviou uma carta aos pais, contendo uma foto da esposa e dos filhos, junto ao pedido para que o perdoassem.

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O imigrante Georg Anger (*07-12-1887, Crailsheim, na Comarca de Sttugard, no Reino de Württenberg †18-09-1973, Quilombo), filho de Joseph e Catharina Anger, desertou do exército da Alemanha, durante a I Guerra Mundial.

Tornou-se professor. Ministrava as aulas em Língua Alemã, mas incluiu no currículo o ensino da Língua Portuguesa, que dominava com perfeição. Após ter sido contratado pelo Estado pra desempenhar essa função, casou-se, em 05-08-1920, na Igreja Evangélica de Confissão Luterana Sinodal do Quilombo, com Martha Jahnke (*25-09-1893 †15-03-1985), filha do imigrante Wilhelm Friedrich Ferdinand Jahnke e de Hulda Mathilde Amalie Rutsatz. Foram sepultados no Cemitério Comunitário da Linha do Rio Norte.

Ao que tudo indica, foi feliz no lugar que escolheu para viver. Resolveu também se refugiar onde escravos fugitivos se esconderam há muitos anos, mas que, ao serem descobertos, foram massacrados.

Durante a II Guerra Mundial, foi preso diversas vezes, sob a alegação de ser nazista. Mas nunca conseguiram mantê-lo atrás das grades, já que podia se defender no idioma oficial. E graças a ele, uma Deustche Schule (escola alemã) interiorana e pobre não pôde ser fechada. Frustrados com isso, os Deutschfresser (caçadores de supostos nazistas) resolveram incinerá-la. E da bela capelinha em madeira, assim como da cruz de Cristo que havia sobre o altar, restaram, ao amanhecer, apenas as cinzas.

Igreja Evangélica Sinodal no Quilombo
A Igreja Evangélica Sinodal no Quilombo, onde Georg Anger e Martha Jahnke se casaram. Servia também de escola, denominada Deutsche Schule, onde ele atuava como professor em um turno. Foi incinerada em uma noite durante a II Guerra Mundial, sendo totalmente destruída pelas chamas. Na foto temos o encerramento do ano letivo em 1920, com um culto festivo de confraternização com os pais.
Georg Anger também atuou como professor da Deutsche Schule na Linha do Rio, onde lecionava no turno inverso, até 1925.

Turismo de Parto, por Samuel Ferreira

Mamães russas, bebês brasileiros. Então o Brasil não é tão ruim assim?

Há um discurso clichê que afirma: “nascer e viver no Brasil é algo ruim, negativo e perigoso”. É comum ouvir de pessoas próximas, ou de certa fama, que o melhor é ir embora do país, pois no país X ou Y, a vida será muito mais fácil, pois “não há mais condições de se viver no Brasil”. Sabemos que o Brasil é um país desigual. Desigualdades estas que foram constituídas secularmente por problemas sociais, econômicos, históricos e culturais. Precisamos também ressaltar questões modernas, como racismo estrutural, altos índices de feminicídio, violência por parte do Estado, intolerância política e religiosa, desemprego e precarização do trabalho, principalmente no mercado informal. Mas em meio a este caldeirão de dificuldades, é necessário que nos perguntemos: o que é positivo em nosso país?

Com a invasão da Rússia ao território ucraniano em 2022, houve um crescimento do que tem sido chamado de “turismo de parto”. As russas vêm ao Brasil em estágio avançado de gestação, geralmente com seus companheiros ou outros familiares, para que seus filhos nasçam aqui, assegurando uma cidadania brasileira para eles. Os partos ocorrem tanto na rede pública de saúde quanto em hospitais privados. Não há nada de ilegal nesta prática, pois o Brasil não dispõe de dispositivos legais para barrar a entrada de imigrantes.  Tratando-se de um conflito bélico, com tensões acirradas entre Rússia, Ucrânia e demais nações integrantes da OTAN, o direito a uma cidadania brasileira não será negado às famílias neste contexto, em nome da boa reputação diplomática do nosso país no cenário mundial.

Apesar de o Brasil ser um dos campeões no índice de cesarianas, com alarmantes 52% dos partos realizados no país, quando o recomendado pela Organização Mundial de Saúde é um percentual de 15%, a existência de uma rede de pediatras, obstetras, enfermeiros e outros profissionais bem qualificados, assim como o direcionamento das políticas de saúde para os chamados “partos humanizados”, atraem as russas na busca de um país seguro para darem à luz. A existência do Sistema Único de Saúde, totalmente gratuito, caso sejam necessárias intervenções médicas de emergência, também tranquiliza essas mães. 

Entretanto, o viés negativo do turismo de parto das russas é o número crescente de agências que começaram a perceber a existência desse “mercado”. O estado de Santa Catarina é o mais procurado por tais “prestadores de serviço”, onde há equipes especializadas na recepção, hospedagem, serviços de obstetrícia e tudo o que for indispensável. Muitas famílias russas são formadas por nacionalidades mistas, fruto da dissolução da antiga União Soviética em países menores. Assim, há casos em que os passaportes são restritivos. Tais agências acabam se aproveitando do desespero de uma situação de guerra para extorquir dinheiro dessas famílias. Apesar de atualmente não se configurarem situações flagrantes de tráfico de humanos, problemas dessa natureza poderão surgir no futuro.

O mais importante deste fato é a constatação de que o Brasil ainda é um bastião da democracia e do acesso à saúde, se comparado à Rússia ou a outros países da Europa, Ásia ou África. Além de ser pouco provável que o país se envolva em uma guerra iminente. Aproximadamente 150 países aceitam o passaporte brasileiro, o que é um cartão de visitas diplomático para o mundo. Assim, podemos entender porque pais e mães russos querem a nacionalidade e a cidadania brasileira para os seus filhos. Cabe a reflexão de que o Brasil não é propriamente um paraíso, mas é melhor do que muitos lugares. Talvez o que nos falte seja o entendimento de que privilégios são para poucos, e direitos são para todos. Então, que lutemos e trabalhemos por direitos!

Brasil Exportação, por Kike Cárcamo

Se no século XX a imagem do Brasil em todo mundo se limitava a carnaval, futebol, mulheres sensuais e corrupção, nos últimos anos o Brasil tem despontado na mídia dos países desenvolvidos como um “Brasil cult”, com séries e artistas tupiniquins bem-sucedidos. Desde a época de colônia portuguesa que o país sofre com a ideia de que o brasileiro é um ser limitado, desprovido de cultura. O complexo de vira-lata foi descrito em 1958 pelo jornalista brasileiro Nelson Rodrigues como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Felizmente, com o aparecimento das mídias digitais, ficou visível ao brasileiro e, aos estrangeiros, o óbvio: o Brasil tem a cultura mais diversificada, colorida, e original de todo o mundo. É hercúleo inventariar os mais diversos setores culturais e os expoentes brazucas, mas citamos alguns.

Literatura contemporânea

Na literatura do século XX tivemos autores que se tornaram best-seller em todo o mundo, como Jorge Amado (com o romance “Gabriela”), Paulo Coelho (“O Alquimista”), João Ubaldo Ribeiro (“Viva o povo brasileiro”), Itamar Vieira Júnior (“Torto arado”), Geovani Martins (“O sol na cabeça”) e Carla Madeira (“Tudo é Rio”), para citar alguns.

Cinema e TV

A excepcional Fernanda Montenegro foi indicada para o Oscar de Melhor Atriz, por Central do Brasil, em 1999, sem levar o prêmio. Por outro lado, ganhou o Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim pelo mesmo papel em 1998. O Emmy veio em 2013, pela impagável Dona Picucha, na série para TV “Doce de Mãe”, dirigida por Jorge Furtado.

Outros talentos brasileiros, dignos de menção, que não levaram o Oscar, mas tiveram o trabalho reconhecido internacionalmente, foram Anselmo Duarte (O pagador de promessas, 1963), Fábio Barreto (O quatrilho, 1996), Bruno Barreto (O que é isso, companheiro?,1997), Walter Salles Júnior (Central do Brasil, 1999) e Fernando Meirelles (Cidade de Deus, 2004).

Norte-americanos e europeus acabaram se rendendo ao talento tupiniquim com a chegada de artistas como Rodrigo Santoro, Alice Braga, Wagner Moura, Morena Baccarin, Maria Fernanda Candido e, mais recentemente, Bruna Marquezine. E o que dizer do diretor cinematográfico Carlos Saldanha, que fez sucesso no cinema de animação, com a trilogia “A era do gelo”, além de “Rio” e “Rio 2”? Recentemente, Saldanha bombou na Netflix com a série “Cidade Invisível”.

Dança

O samba é reconhecido internacionalmente pela exibição dos desfiles de escola de samba, mas temos o forró e a gafieira se tornando conhecidos em várias partes do mundo. A melhor escola de balé do mundo, o Bolshoi da Rússia, abriu sua única filial em terras brasileiras. Foi em 2000, na cidade de Joinville, Santa Catarina. Anualmente, cinco bailarinos brasileiros são levados para um estágio na Rússia.

Música

O Brasil começou a atrair a atenção mundial quando um show em 1962, no Carnegie Hall de Nova Iorque, apresentou o que havia de melhor na Bossa Nova brasileira. Seja pelo ritmo, a alegria genuína, a virtuosidade instrumental ou a beleza do português cantado, a música brasileira continuou sendo ouvida e respeitada em todos os cantos do planeta. E não se limita a um estilo musical. Em 2011 tivemos o cantor sertanejo Michel Teló, com a música “Ai se eu te pego”, que virou uma febre internacional, a ponto de ter sido gravada em inglês.

De lá para cá, o público internacional acompanha a carreira de Anita cantando funk em português e inglês. Seu Jorge é outro brasileiro que grava nesses dois idiomas para o mercado internacional, cantando samba. E para quem gosta de música instrumental, não podemos esquecer do sensacional violonista Yamandu Costa, que mistura choro, bossa nova, milonga, tango, jazz, samba e chamamé!

Artes Plásticas

No século XX, tivemos Candido Portinari. Ficou famoso por retratar temas sociais, históricos e religiosos brasileiros. Suas pinturas refletem a vida no campo e na cidade, a infância, os tipos e as festas populares, os mitos, o folclore, a fauna, a flora e a paisagem, sendo “Os retirantes” e “Guerra e paz” as mais conhecidas. “Guerra e Paz” são dois grandes painéis, presenteados à ONU em 1956 e prontamente instalados nos pontos de maior relevância da sede, em Nova York: “Guerra” se encontra na entrada da Assembleia Geral, enquanto “Paz” foi acondicionada na saída.

Vik Muniz é um artista plástico brasileiro que ganhou notoriedade a partir dos anos 1990, sendo uma referência mundial, por suas fotografias que incorporam materiais recicláveis à arte. Ele subverte o tamanho das obras, aumentando ou reduzindo, tornando impossível saber quais são as dimensões originais. O registro do seu trabalho no aterro sanitário de Jardim Gramacho deu origem ao premiado documentário “Lixo Extraordinário”, de 2010.

Ainda na fotografia, temos o sensacional Sebastião Salgado, consagrado fotógrafo documental e fotojornalista. Salgado já viajou por mais de 120 países. A maioria deles apareceu em inúmeras publicações de imprensa e livros. Exposições itinerantes de seu trabalho foram apresentadas em todo o mundo.

Nas artes plásticas, Romero Britto se tornou um “artista das celebridades”, sendo considerado um ícone do estilo colorido conhecido como “pop art”. Dentro da cultura hip hop destacam-se os irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos como “Os gêmeos”. Grafiteiros de São Paulo, tiveram seu trabalho reconhecido ao virarem tema da 12oz Prophet Graffiti Magazine e no Tate Modern, museu de arte moderna em Londres, com sua “street art”. A “arte de rua” tem outro representante potente: o muralista Eduardo Kobra. Apaixonado por pintura e grafite, Kobra desenvolveu um estilo inconfundível, caracterizado por cores vibrantes e linhas audaciosas.

É imprescindível que o governo brasileiro, neste momento de retomada do crescimento econômico, invista no setor cultural. Não só pela diversificação do modus operante da prestação de serviços, aquecendo certos nichos, como o entretenimento, mas para que os próprios artistas brasileiros passem a valorizar sua própria arte. Não somos imitação de outras culturas estrangeiras – somos movidos à originalidade e ousadia.

Gringo Influencer: Carisma ou Atestado de Viralatismo? por Karine Souza e Pousas

Morar num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza é realmente uma beleza. Jorge Benjor não podia ter cantado diferente. Acontece que com a popularização da internet nossa caminhada em relação à globalização acelerou. Ter experiências culturais completamente diferentes das nossas estão a um clique de distância. O brasileiro, curioso e criativo, aproveita esse fenômeno principalmente nas redes sociais. Seguir influenciadores digitais é uma porta de entrada para conhecer novas pessoas, novas formas de encarar a vida.

Talvez o evento mais contra intuitivo seja o fato de os brasileiros seguirem perfis estrangeiros que, pasmem, moram ou visitam o Brasil e contam como eles percebem esta experiência. Sim, estou falando que é comum chover brasileiros nesse tipo de perfil. Pode ser que a esta altura você já tenha me interrompido com pensamentos do tipo:

— Ah, mas é bom saber o que pensam de nós. Não vejo nada de errado em conhecer minha própria cultura e o lugar onde vivo por outras lentes.

O ponto não é este. As fórmulas de marketing e enredos do tipo “Jornada do Herói” não são desperdiçados aqui. Observando esse tipo de perfil é possível notar um padrão na construção dos conteúdos. São piadas sobre os costumes, expressões e até estereótipos (que por vezes nem existem na prática) do que é ser brasileiro, enaltecendo este estilo de vida. O perfil do público fica explícito. O conteúdo não é construído para que alguém de outras paragens desperte a curiosidade ou se encante pelo Brasil. As postagens são para atrair brasileiros e, diga-se de passagem, alcançam o ideal com maestria.

Para quem é fã de piadas sem graça, como é o meu caso, ou gosta da narrativa rápida e fácil — típica dos conteúdos para feeds infinitos nas redes sociais — vale dizer que este pode ser um padrão viciante. Porém, não se deixe enganar pelo pão e circo: são migalhas de afago ao ego do brasileiro que segue sua saga na busca de aprovação por países imperialistas. Sim, este é um detalhe que não pode escapar à discussão: a maioria destes gringos influencers seguidos e acolhidos por brasileiros são personalidades norte-americanas ou europeias.

— Peraí, mas o Brasil tem imigrantes do mundo inteiro!

Sim, e este é o ponto. Nós não temos gringos influencers latinos bombando nas redes sociais brasileiras, por exemplo. Se o legal é o ponto de vista de estrangeiros sobre o Brasil, por que não acolhemos também um perfil asiático, africano ou um imigrante latino?

Mesmo não sendo pé de valsa, reforço o refrão cantado por Juraildes da Cruz em “Nóis é Jeca Mais é Jóia”: “Se farinha fosse americana, mandioca importada, banquete de bacana era farinhada.” 

Por trás de cada tela, de cada clique, existe um ser humano (ou acreditamos que assim é). Quando as pessoas têm uma atitude de forma massiva, podemos tentar analisar o que essa maioria intenta. Não dá para esquecer a hipótese do complexo de vira-latas (ou viralatismo) elaborada por Nelson Rodrigues. Ele enfatiza justamente essa questão, mostrando como o brasileiro se coloca nesta posição.

Estaríamos fazendo um movimento em busca do entretenimento, de novas perspectivas, simplesmente apresentando nosso ângulo mais caloroso e carismático, ou esta atitude não passa apenas de uma repetição da necessidade de aprovação por determinadas culturas? Este é um ponto que ultrapassa a fronteira das massas. Trata-se de uma tendência que se espalha pela produção acadêmica, respingando de bom grado na cultura e na arte. Aqui a questão maior é a validação.

Um jogador de futebol, para ser considerado bom e ter o passe valorizado, precisa ser comprado por um time estrangeiro, melhor ainda se for europeu. Um cientista, para ter seu doutorado considerado de qualidade deve fazer um sanduíche numa instituição no exterior — mesmo que em algumas áreas tenhamos excelência científica, como no caso das Ciências Ambientais. Qual seria o motivo? Provavelmente está neste estigma que carregamos desde a época em que nosso país foi colonizado por Portugal. Uma expectativa de receber as tendências e diretrizes das grandes potências econômicas do planeta. Por isso, estamos sempre passando o chapéu em busca da nossa esmola de cada dia. 

Essa bandeira é velha. No Manifesto Antropofágico de 1928, Oswald de Andrade não poderia sintetizar melhor: “Tupi or not tupi, that is the question”. Este é um chamado para reflexões mais profundas, internas, e que podem refletir em saúde individual e coletiva. Está relacionado com o movimento de se assumir a brasilidade sem a intenção de ocuparmos o trono de nossos opressores. Se os índios esperassem a aprovação dos colonizadores para manterem seus modos e padrões, então o banho não seria mais um ritual de higiene diária e sim uma passada de panos semanal. Sem nos fecharmos em nossa própria cultura, é hora de aceitarmos o outro, mas sem gesto de subserviência. Não devemos aguardar o aval estrangeiro para nos sentirmos gratos por sermos quem somos. Ainda assim, a troca de ideias é enriquecedora e, já que somos tão hospitaleiros, sempre que possível, também vale oferecer um cafezinho junto com os dois dedos de prosa.

Conto: Açores E Angola, por Marcelo Elo Almeida

“Ora, pois, que tu me sais muito pior que a encomenda, gajo. O que fazias lá naqueles Açores que não sabes limpar um peixe? Pensas que a tua viagem naquele barco saiu-me de graça? No fio do bigode? Se nem bigode tu tens, que dirá palavra e honra! Em que malta tu te meteste desta vez? Não vou mais procurar-te em delegacia nenhuma. Na próxima, vais mofar lá. Entendeste, mandrião? Que desperdício! Como come! Tantos réis por isso! Assim, os cinco anos contratados não irão terminar nunca, compreendeste, açoriano? Tu pensas que só faltam mesmo três anos? Ainda a dormir, açoriano? Assim não é possível!”

As frases reverberavam na mente de Joaquim, revirando-o no tabique, às vezes desperto, às vezes ressonante, a estopa curta que mal cortava o vento sul daquele início de julho. Suava, ao mesmo tempo que sentia frio.

– Três anos! Três anos!

– Me deixa dormir, ô Joaquim. Já vai raiar e eu quase que não dormi com o seu barulho. Daqui a pouco nós tem que descarregar um tanto de pipa de vinho – resmunga Estevão, a voz sempre rouca e baixa, cobrindo a cabeça com o saco de aniagem e o ouvido esquerdo com o ante-braço musculoso e negro.

Parecia que o vento fazia a curva na entrada da baía e penetrava pelas frestas do telhado, alojando-se naquele trapiche a exalar bacalhau, umidade e vinho, cujos fundos davam para a praia. Manoel Gonçalves, filho do Porto, trocara de lado do oceano havia alguns anos, vindo atrás da oportunidade de vender na crescente capital carioca aquilo que ele tão bem conhecia em suas terras. E a intuição indicara-lhe o caminho certo. Prosperara vendendo para os principais restaurantes da rua do Ouvidor e entorno. Até pra caridade sobrava, concordando em trazer um primo distante a morrer de fome no meio do Atlântico. Aqui não lhe faltariam nem casa nem comida. Nem trabalho, muito trabalho. Nem uma grande dívida.

– Ora, pois, que tu me sais muito pior que a encomenda, gajo. O que fazias naqueles Açores que não sabes limpar um peixe?

Paciência, que se há de fazer, a caridade tem dessas coisas. Sangue do meu sangue, não podia negar o pedido da Amália, prima de segundo grau, com um rapazote em casa ansioso por comida e novos ares.

“Que seja, prima! Pago-lhe a passagem. Mande-o pelo primeiro barco que aí aportar e vier pro Rio de Janeiro. Diga-lhe para procurar o trapiche de Manoel Gonçalves na Sacadura Cabral. Sou muito conhecido e bem estabelecido por estas bandas. Acalme o coração, aqui ele terá trabalho e o que comer… E não te esqueças de entregar esta carta nas mãos do comandante, entendeste bem? Aqui eu me vejo com ele.”

 – Vai meu filho, vai ser mais um brasileiro – Amália na pedra do porto a abanar o lenço úmido.

E foi. Aprendeu a conduzir as pequenas embarcações que por falta de atracadouro buscavam as mercadorias nos navios na baía de Guanabara. Aprendeu a guiar as carroças pelas ruas da capital imperial e a entregar bacalhau e vinho de boa qualidade nos restaurantes e armazéns da rua do Ouvidor, e os de menor preço e procedência duvidosa nos quiosques do Largo da Carioca. Aprendeu a ver o tempo passar devagar, os cinco anos que pareciam cinquenta. “Mas eu não morro, nem saudade me tonteia.” –  pensa Joaquim, com os olhos açoreados. Aprendeu a dormir pouco e a trabalhar muito. A não ter domingo nem dia santo. Que Santo Antônio me proteja. A ter menos dinheiro do que na vila de São Roque. A usar calças de estopa e camisas de pano grosso. A treinar capoeira com Estevão nos poucos momentos de lazer. A fugir da polícia e apanhar calado. A usar canivete e calcanhar. Aprendeu a ser escravo.

– Mais três anos.

– Ora, Joaquim, não reclame. O teu tempo está acabando. O meu só acaba com a minha morte. E tu não tem lanho de chicote nas costa, nem furo no pescoço.

– Ao menos tu consegues fazer algum ganho para comprar a tua alforria. E eu? Trabalho por comida e moradia. Nem se eu fizesse entrega escondido do patrão não ia adiantar de nada. Dinheiro não compra minha liberdade. Só o tempo…

– Dinheiro compra tudo, Joaquim… Mas ao menos ele é teu parente. – Estevão retruca com dificuldade, um fio de voz.

– Antes não fosse. Se minha mãe soubesse…

– Não ia fazer nada de longe, que nem a minha que também não fez nada. Aqui tu não morre de fome.

– Mas morro de outro jeito.

– Vamos descansar, Joaquim, já vai raiar.

Estevão não contestou mais. Um silêncio compreensivo, a memória de Angola amenizada, mas nunca esquecida, mesmo tantos anos depois. Aiuê! Lá, o mar era verde, não era esse cinzento dessa baía. Cruzei o mar sem saber nadar. Muito medo, meus dente ficaram no fundo do oceano. Na tua terra os negro não tem dente, Luanda? Tuas maldade é que fez eles cair, peste. “Mas eu não morro, nem banzo me tonteia.” –  pensa Kiame, rebatizado Estevão, com os olhos angolados. Sou forte, malta inimiga que o diga. Pode me marcar, grilhões pro negro fujão, meu pescoço sabe muito bem, assim como minha voz, rouca pela gargalheira sufocante. Mas não me calam. Não me matam. Sou forte, por isso me caçaram. Me queriam de volta a todo custo. Vivo. Trabalhando, sempre. Então, eu trabalho, entrego bacalhau nos restaurante de rico, seis dias bacalhau português, um dia o bacalhau que não é bacalhau, se reclamam, eu paro, mas depois volto, morro mas volto, sempre volto, tanto que falta pra alforria. Só nas noite de sábado eu tenho paz, a capoeira, o batuque, as mulheres do cais. Que Zambi me proteja do Sol que brilha.

– Levantem, imprestáveis, que o dia não espera!

Livros Indicados

Nesta edição, indicamos livros internacionais para prestigiar a edição dos imigrantes, trazendo para nossos leitores obras consagradas da literatura Francesa, Russa e Inglesa.

O Estrangeiro – Autor: Albert Camus

O estrangeiro narra a história de um homem comum que se depara com o absurdo da condição humana depois que comete um crime quase inconscientemente. Meursault, que vivia sua liberdade de ir e vir sem ter consciência dela, subitamente perde-a envolvido pelas circunstâncias e acaba descobrindo uma liberdade maior e mais assustadora na própria capacidade de se autodeterminar. Uma reflexão sobre liberdade e condição humana que deixou marcas profundas no pensamento ocidental. Uma das mais belas narrativas deste século. Escrito em 1957, O estrangeiro é o mais pop(ular) dos livros do francês nascido na Argélia Albert Camus. Tão pop que rendeu até música do grupo de rock inglês The Cure (“Killing an Arab”). Tão popular porque, à parte ser a seca narrativa das desventuras de Mersault, é também a narrativa das desventuras do homem do século XX. Uma espécie de autobiografia de todo mundo. Seu drama pode ser lido como o drama de qualquer homem do século, o homem que se depara com o absurdo, ponto central do pensamento camusiano. – Saiba mais…

A Morte de Ivan Ilitch – Autor: Liev Tolstói

Ivan Ilitch acreditava ser um homem especial, não pensando no fim que todos terão igualmente um dia. Ele estava comprometido com a vida buscando ascensão profissional, status financeiro e o poder de um funcionário público do sistema judiciário da Rússia czarista. No auge da carreira ele sofre um acidente trivial que gradualmente começa a atormentá-lo. Os médicos não conseguem aliviar o sofrimento dele nem lidar com a misteriosa doença que consome sua vida. A morte de Ivan Ilitch revela o desespero que surge com a consciência despertada para a verdadeira natureza da vida. Saiba mais…

O Retrato de Dorian Gray – Autor: Oscar Wilde

Inebriado por sua beleza, Dorian Gray busca a juventude eterna e abre mão da sua alma para que apenas uma pintura a óleo, de autoria do artista Basil Hallward, envelheça e ele possa desfrutar dos prazeres da vida. O retrato de Dorian Gray é o único romance escrito por Oscar Wilde. Publicado originalmente em 1890, foi considerado imoral para a época e teve palavras censuradas, o que resultou em uma nova edição ampliada pelo autor indignado. Com elementos góticos, fáusticos e do hedonismo, Wilde critica a sociedade e cultura vitoriana, apresentando um protagonista que abandona suas virtudes sem busca do prazer individual. Saiba mais…

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