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Thomas Malthus, filósofo e economista inglês (1766 – 1834), afirmava que a população humana cresce mais rapidamente do que a sua capacidade de produzir alimentos. Segundo seu pensamento, a humanidade está fadada a viver na miséria. Durante muito tempo, suas teorias embasaram a vertente econômica do neoliberalismo, baseada no livre mercado e na influência mínima do Estado.
Podemos pensar que se a causa da miséria é o crescimento populacional, então políticas globais de controle de natalidade resolveriam a questão. Será? O que Malthus desconsiderou em sua teoria é que o acesso à alimentação é limitado pela concentração de renda e pelas grandes desigualdades sociais. Não se trata de uma produção equitativa, na qual constata-se que nem todos conseguirão comer. É, talvez, mais pessimista e cruel do que as premissas malthusianas: poucos acumulam o que daria para alimentar a humanidade inteira, sem a menor preocupação com acesso à alimentação, à água, ou às necessidades básicas para a dignidade humana.
Assim, a alimentação é uma batalha travada diariamente em diversos locais do globo. Nesta edição, enfocamos alguns aspectos relevantes em termos de Brasil, como a problemática da produção de carne no país, a dualidade entre a cozinha afetiva e a gourmetização, e a elitização presente no consumo das chamadas “boas calorias”. Sabemos que as questões do “alimentar e comer” são múltiplas e complexas, mas esperamos provocar algumas reflexões em nossos leitores.
Boa leitura a todos!
Resenha do livro: O clube dos anjos, de Luis Fernando Verissimo, por Daiane Carrasco
“Eu nunca chego, simplesmente, numa cadeira ou numa mesa, eu atraco. Um processo difícil, na falta de rebocadores. Naquele dia, derrubei um açucareiro e quase derrubei a mesa e deixei cair o vinho antes de encontrar minha posição na cadeira e chamar a garçonete. Minha namorada, a coitada da Lívia, sempre diz que eu nunca sei de quanto espaço eu preciso, e que isso vem de uma infância de gordo mimado. Algo a ver com ser um filho único que nunca conheceu limites. A coitada da Lívia é psicóloga e nutricionista, há anos que tenta me salvar. Eu não sou o seu amante, sou a sua causa. Já tive três mulheres e as três queriam o meu dinheiro. A Lívia não quer o meu dinheiro. Quer ser a mulher que me recuperará, o que eu acho muito mais interesseiro e assustador.”
O narrador, Daniel, o “gordo mimado”, conta-nos a pitoresca e anormal jornada de êxtase gastronômico e morte do “Clube do Picadinho”. Dez amigos reúnem-se há 21 anos para confraternizar e comer. Inicialmente, encontravam-se do Bar do Alberi e degustavam o prato típico do lugar, um picadinho com banana (daí o nome do clube). Com o tempo, as reuniões foram evoluindo, até que cada um oferecia um jantar na sua casa, uma vez por mês. Com a morte de um dos integrantes, Ramos, o grupo perdeu a motivação. Certa vez, Daniel conhece um homem misterioso, Lucídio, que faz parte de uma sociedade secreta que prepara o fugu – o peixe mortal da culinária japonesa, em busca de uma escama dada a quem passa 10 anos experimentando o peixe de aprendizes da arte do fugu sem morrer.
A partir da entrada de Lucídio para substituir o falecido Ramos, tudo muda: exímio cozinheiro, passa a comandar o preparo dos jantares do Clube do Picadinho, com um porém: a cada jantar maravilhoso, um dos membros do Clube morre. Daniel é o único que sobrevive. Não entrarei nos pormenores dos jantares, nem nas motivações pessoais de cada personagem, que prefere saborear a comida a permanecer vivo. O que posso afirmar é que Luis Fernando Verissimo nos traz uma alegoria do pecado da gula: os homens da sua ficção enchem seus estômagos na tentativa de compensar uma vida vazia de propósitos.
Para a epígrafe, o autor escolheu: “Todo desejo é um desejo de morte.” (Possível máxima japonesa) – uma reflexão sobre o quanto cada um de nós está disposto a se sacrificar por seus anseios. É um livro sarcástico, irônico e bem-humorado, uma leitura aparentemente superficial, mas com incursões profundas em temas como a imaturidade, a solidão e a amizade. A fome de alguns é insaciável até a morte…
O clube dos anjos
Autor: Luis Fernando Verissimo
Uma confraria de gourmets que não recusa o prazer da comida ainda que isso possa significar a morte de cada um de seus integrantes. Um verdadeiro ensaio sobre a natureza humana, esse clássico livro é também uma insólita e bem-humorada celebração a um dos mais notórios pecados capitais: a gula.
Conta a história de um seleto grupo que, desde a juventude, se reúne para apreciar, em lautos jantares, o prazer da gula. Quando um misterioso cozinheiro aparece para reavivar os encontros da confraria, assassinatos em série começam a acontecer após cada jantar. E o grupo entra numa espiral, em que a perspectiva da morte só aumenta o prazer da comida.
“É fácil atravessar as páginas de O clube dos anjos em pouco mais de uma hora. Difícil é deixar de pensar nelas quando se fecha o livro.” Saiba mais…
Chocolate (2000), de Lasse Hallström, por Daiane Carrasco
Vianne Rocher (Juliette Binoche), mãe solteira, independente, chega a uma pacata cidade no interior da França junto com sua filha de seis anos, Annouk (Victoire Trivisol). As duas se estabelecem no local e alugam um imóvel de dois andares em frente à Igreja, em pleno tempo da Quaresma. Vianne é uma mestra chocolateira e monta uma chocolateria, morando no andar superior.
A cidade vive sob o jugo do Conde Paul de Reynaud (Alfred Molina), um homem poderoso, extremamente católico e moralista, que dita normas a todos. Conclama os moradores da cidade à penitência e ao jejum, mas eles oscilam. O Conde subentende que é por conta da nova chocolateria e ordena um boicote.
Vianne enfrenta a resistência da população do vilarejo. Porém, vai conquistando espaço com seu talento. Prepara um chocolate específico para cada cliente, através da observação e da escuta atenta, fazendo-os ceder às tentações e aos desejos. O roteiro explora magistralmente o contraponto entre prazer e repressão.
Há todo um simbolismo em cada personagem, como a pequena Annouk, que tem um canguru de pelúcia, Pantoufe. Sua mãe muda-se constantemente, “conforme a direção do vento”. Só que crianças necessitam de apego. Annouk resiste quando a mãe novamente quer mudar-se, dizendo-lhe que Pantoufe está com a perna machucada. Na verdade, é ela, tão pequena, que se sente quebrada por uma vida nômade. Ou a velha Amande (Judi Dench), que trava uma batalha contra a filha Caroline (Carrie-Anne Moss), conservadora, pela maneira como ela educa o seu neto, impedindo-o de descobrir a vida. Caroline quer colocá-la em um asilo por suas condições precárias de saúde em razão do diabetes. É o clássico “estou fazendo isso para o seu bem”, e talvez estivesse, mas não deixa de ser a dominação daquele que se tornou mais fraco devido à velhice. Amande recusa-se a aceitar o controle da filha. Em sua festa de aniversário, rebela-se. Come o chocolate porque prefere aderir aos prazeres, mesmo que custe-lhe a vida.
As tramas secundárias transcorrem. Vemos a comovente transformação dos moradores da cidade à medida que aprendem a desfrutar dos pequenos deleites, simbolizados pelos chocolates. Até que um barco de ciganos atraca na cidade e com ele o cigano Roux (Johnny Depp). Neste momento, o enredo muda de enfoque: Vianne, tão exímia em dar prazer aos outros, precisa permitir-se também ao prazer. A beleza do roteiro reside aí: é a grande metáfora de todas as mulheres, que por vezes fingem, satisfazem aos outros, mas não são capazes de entregar-se às próprias vontades.
Deixo-lhes com a curiosidade de saber mais, caros leitores. A Sétima Arte tem joias que nos transformam pela experiência de uma história contada em 120 minutos. Chocolate, sem dúvida, é uma delas.
Chocolate (2000), de Lasse Hallström
Elenco: Juliette Binoche, Johnny Depp, Alfred Molina Vianne Rocher (Juliette Binoche), uma jovem mãe solteira, e sua filha de seis anos (Victorie Thivisol) resolvem se mudar para uma cidade rural da França. Lá decidem abrir uma loja de chocolates que funciona todos os dias da semana, bem em frente à igreja local, o que atrai a certeza da população de que o negócio não vá durar muito tempo. Porém, aos poucos Vianne consegue persuadir os moradores da cidade em que agora vive a desfrutar seus deliciosos produtos, transformando o ceticismo inicial em uma calorosa recepção.
Saiba mais… (AdoroCinema)
O pulso ainda pulsa, por Stéfani Quevedo
Desde quando a alimentação deixou de ser uma necessidade ou mesmo ensejo para tradições e passou a ser uma monumental experiência? É possível imaginar que, com uma hipotética espetacularização alimentícia, o simples fato de ingerir nutrientes necessários, por intermédio da deglutição, resultou em complexidade. O termo “gourmet” bebe de fontes francesas, vocábulo que serve para nomear um indivíduo sabedor de iguarias culinárias, bem como de bebidas, que possam arrancar suspiros a cada garfada, a cada gole. Logo, a “gourmetização” invadiu muitos espaços e o cenário tupiniquim não ficou de fora, fazendo com que mais pessoas busquem, agora, um diferencial, por meio de um maior requinte ou etapas singulares no preparo de alimentos.
Pessoas movidas pelos grandiosos eventos televisivos, assim como por meio de vitrines virtuais, passam por um tipo de encantamento, que as fazem crer na necessidade de um investimento maior em suas refeições, buscando a tão sonhada “explosão de sabores”. Portanto, inserir pitadas de pimenta em um famigerado brigadeiro pode render um prazer superfaturado, justamente por apresentar em sua etiqueta a tão sedutora palavra “gourmet”.
Suntuosos reality shows adentram os lares reforçando a ideia de que tudo é válido para proporcionar um elemento mágico aos paladares mais exigentes! A questão que aqui saliento, não se trata apenas de uma competição que evidencie o profissional de culinária que mais estudou e se empenhou em sua tarefa. Trago provocações acerca do bizarro, como exigir as mais dificultosas atividades para quem não tem sequer uma pequena relação com a arte de cozinhar, ou competições acirradas para profissionais da área provarem competência. Por vezes, enfrentam os mais mirabolantes desafios no preparo de um Bife Wellington, por exemplo, que trocando em miúdos trata-se de um filé-mignon com um recheio feito de cogumelos, envolvido em uma massa folhada, prato esse que dista da alimentação da maioria da população. Tais programas são líderes de audiência. Espectadores ovacionam o quadro dramático em que os cozinheiros têm a “prova da panela em chamas” em bancadas giratórias, ou o preparo da comida com olhos vendados.
Há quem goste de assistir aos programas que levam seus participantes a vivenciarem uma tempestade de areia, enquanto devem cozinhar um prato excepcional. Ah! Geralmente, os competidores devem passar pelo crivo de grandes profissionais do ramo em programas como: “Mandou bem”; “Extreme Chef”; “A Batalha dos Piores Cozinheiros”, dentre outros. A questão que paira no ar refere-se a imaginar se estamos mesmo “gourmetizando” apenas comidas, ou se talvez a fome seja outra – de status, por exemplo. Experimentar um alimento que pouco preenche o estômago, mas sacia o ego, oferece prestígio. Se o influencer mais famoso deu o ar da graça em um determinado restaurante, seus seguidores podem sacrificar suas economias para ter a extraordinária experiência gastronômica.
Um dia desses assisti, com a minha esposa, ao filme intitulado “Fome de Sucesso”, uma produção tailandesa que tem em seu enredo uma moça de família pouco abastada, que sobrevive de um restaurante singelo, onde comidas caseiras são servidas, uma tradição de gerações, apresenta uma iguaria pouco aclamada na atual conjuntura, o afeto. A personagem, movida pela vontade de superar seus limites, depara-se com um chef renomado, rígido e muito ambicioso, disposto a fazer cabeças de degraus, para alcançar seus objetivos e nele encontra o caminho para trilhar seu desejado sucesso. Não serei a estraga prazeres, sem grandes spoilers, mas dois trechos de diálogos fizeram-me companhia por esses dias como: “Comida com amor é só uma desculpa sentimental de quem não consegue sair da pobreza”. Tal menção equipara-se a imaginar que uma refeição de avó, feita com simplicidade, apenas com a vontade de arrancar sorrisos dos pequenos, temperada intuitivamente, é vista de forma demasiadamente básica, sem brio. Entre extremos, constrói-se a imensa parede que separa os que podem mais, bem distantes daqueles que dormem embalados, muitas vezes, com a dolorosa sonoridade do estômago.
Calma que tem mais! Agora falo da segunda provocação que ficou por dias latente, dentro daquela que costumo chamar de “inquilina”, a tal consciência. De certa forma, muita verdade “marinou” nesse outro trecho da mesma produção: “Os pobres comem para matar a fome, mas quando se tem mais do que o suficiente para comer, a fome nunca acaba”.
Caro leitor, o apetite, aqui citado, costuma ser ambicionado por uma manada que vai levando os que pouco ou nada questionam. Ademais, pessoas se deixam levar por modismo, fotografam pratos que esbanjam requinte publicando-os em suas mídias, ao mesmo tempo em que há diversas pessoas angustiadas, procurando restos de comida sem ter quaisquer certezas do que comerão nas próximas horas. Enquanto houver uma grande parcela de pessoas em situação de extrema pobreza, seria de bom tom que continuássemos contribuindo com a indústria da futilidade e da ostentação? Não estou condenando quem escolheu pagar mais caro por um prato gourmetizado, assinado por um renomado chef. Todos podem fazer o que bem entendem com seu dinheiro, mas transformar a alimentação superfaturada e luxuosa em objetivo de vida, utilizando dela para apontar inferioridade em quem não tem acesso à qualidade nutricional, faz-se uma fome desenfreada em busca do que não se sujeita à razão. Dentro do show de exibições, o exclusivismo fala mais alto, o egoísmo torna-se o principal tempero. Lá fora, como diria Arnaldo Antunes, “o pulso, ainda pulsa”, lutando por dignidade bem servida em sua mesa.
Capa do filme tailandês dirigido por Sittisiri Mongkolsiri. Tem como protagonistas Nopachai Chaiyanam e Chutimon Chuengcharoensukying. Hunger traduz-se: fome. Também pode ser encontrado na versão em português como: “Fome de Sucesso”, suspense líder de audiência na Netflix.
A elitização das boas calorias, por Karine Souza e Pousas
Um corpo magro é desejado por muitas pessoas. Com um simbolismo que indica saúde e força, este padrão estético adotado como ideal das elites, normalmente é associado aos parâmetros do sucesso.
Longe de uma preocupação baseada na saúde e na busca do equilíbrio — junto da aceitação do próprio corpo — o nível de gordura corporal tem se transformado em uma espécie de medidor da capacidade e determinação de uma pessoa. Nessa ode aos corpos magros, é como se o acúmulo de gordura surgisse exclusivamente por desleixo, preguiça e falta de persistência.
Estudos apontam para a importância de se manter um bom relacionamento com a balança e uma manobra midiática normalmente alude o padrão estético às conquistas profissionais e econômicas de uma pessoa. O ideal estético muda para a humanidade conforme as situações que se apresentam. Enquanto na Grécia Antiga os corpos atléticos eram tidos como símbolo de saúde e um bom relacionamento espiritual, durante a peste, pessoas mais gordas representavam força, prosperidade e fartura. Entretanto, o que normalmente não é discutido é a relação entre o poder e o acesso a estes padrões ideais (seja por meio de embasamentos científicos, religiosos ou puro modismo).
Se hoje vivenciamos uma corrida em direção a corpos esquálidos, devemos entender que o padrão é regulado por uma mão invisível que separa a elite daqueles que vivem na base social. Isso não significa que pobres não conseguem ser magros, muito menos que a obesidade seja algo benéfico para nossa saúde. Apenas aponta para uma triste realidade: se uma dieta rica em proteínas e diversidade de alimentos traz mais benefícios do que o consumo desenfreado de carboidratos simples, há de se convir que uma dieta equilibrada é menos acessível à grande maioria da população.
Pessoas que vivem no aperto, com baixo poder aquisitivo, raramente terão acesso a um aconselhamento nutricional — e quando têm, como seguir os conselhos com ingredientes e suplementos caros em relação ao custo de vida? Além disso, estamos falando de quem vive com falta de tempo, normalmente com jornadas de trabalho exaustivas, que impossibilitam manter uma atividade física com regularidade (muito menos contratar um personal trainer!) e a dedicação para a preparação de refeições adequadas ao momento e objetivos nutricionais.
Antes de julgarmos a capacidade, vontade e determinação de alguém por causa de sua corporalidade, vale a reflexão: seriam os ideais corpóreos mais presentes nas elites sociais porque aqueles que habitam estes invólucros são pessoas melhores, ou é simplesmente a facilidade para acessar os caminhos que os mantém dentro dos padrões estéticos desejados?
Espero que cada um aprenda a se cuidar de corpo e alma, buscando qualidade de vida, mas que tenhamos senso crítico: boa forma também se relaciona a saldos bancários positivos…
Corrida contra o peso, por Cláudia Borges
Matilde falava ao telefone com a filha na cozinha de casa. Roberta tentava explicar à mãe a importância de cuidar da saúde. As duas estavam engordando muito e sua mãe já tinha a mobilidade prejudicada pelo sobrepeso. Roberta falou em nutricionista e que seria importante se ambas conseguissem atendimento, ao que Matilde respondeu:
— Nutricionista, Roberta? Eu lá tenho dinheiro para isso? Quero muito emagrecer, até achei uma academia que cobra bem barato, aqui no bairro mesmo, mas trabalhando de segunda a sábado quando vou ter tempo de ir? Quando chego em casa é para as atividades domésticas, que nunca acabam, ou para descansar um pouco. Não consigo curtir a vida! As compras do mês, aluguel, água, luz, telefone, internet, não para mais de aparecer conta! O dinheiro com que eu pagaria academia, vou usar para comprar um lanche para nós quando estivermos cansadas de cozinhar. Eu sei, filha, cheguei aos 90 kg, e com meus 1,60 m, tudo complica.
— Mãe, precisas te cuidar!
— Procurei vídeos na internet sobre dieta. Hoje em dia, ensinam de tudo lá, sabia? Aula de qualquer coisa, é só procurar.
— E achaste algo que preste?
— Sim, a maioria manda desembalar menos e descascar mais. Só esqueceram de falar que é bem difícil descascar, cortar e preparar a comida quando se está cansada, com a semana cheia, ainda mais se desembalar sai mais barato. Mal consigo cuidar de mim. Hoje só deu tempo de fazer um miojo.
— Nutricionista, quem pode pagar, né, mãe? Vamos ficar com o bom e barato cachorro-quente: enche a barriga, as veias, as artérias, entope tudo. Até não poder mais!
Roberta foi sarcástica, mas queria sacudir a mãe, convidar para fazer uma caminhada após o trabalho, algo que pudesse mudar o ritmo de engorda das duas. Encerrou a conversa. Sua mãe a preocupava, mas sabia que na situação financeira atual ela não tinha como se cuidar. Sobreviver era o lema. Mas Roberta não desistiu. Amanhã esperaria sua mãe na porta de casa, a convidaria para uma caminhada até uma pracinha do bairro, dessas que têm equipamentos de ginástica. O primeiro passo é o mais difícil.
Cozinhar: um ato de resistência e amor, por Rita Perez Germano
Na casa onde o relógio sempre corria mais rápido que os ponteiros, a cozinha, antes, um coração pulsante e vibrante, um lugar de encontros, tornou-se um espaço de silêncio. Os armários ainda guardavam panelas que um dia conheceram o calor do afeto, mas agora, como soldados reformados, repousavam em inatividade.
Recordo da casa da minha avó em que o cheiro da cebola dourando chamava todos à mesa, antes mesmo de o sino da fome ecoar. Minha irmã, milimetricamente, catava todas as cebolas com maestria e as colocava no canto do prato, mas o gosto… esse ela saboreava. A cozinha era uma festa: risos misturados ao estalar das tampas de panelas, meus primos disputando colheradas de massa crua de bolo, minha avó debatendo se o arroz precisava de mais sal, eu querendo ficar com o cantinho da flauta na divisão do pão… A comida era o pretexto, nunca o fim. O fim era estar ali, juntos.
Com o tempo, o vapor dos cozimentos cedeu lugar à luz fria do micro-ondas. As conversas foram substituídas pelo som solitário do timer avisando que a comida estava pronta e as mãos, antes cúmplices no preparo, agora deslizavam distraídas pelas telas enquanto mastigavam distrações. Cozinhar, que era verbo coletivo, tornou-se ato solitário, e, em muitos casos, nem isso.
E a comida? Essa que sempre fora símbolo de cuidado e afeto, agora carregava o peso da pressa. Tornou-se funcional, distante, quase impessoal. Pouco importa o sabor, contanto que mate a fome, como se fôssemos máquinas a abastecer. E no automatismo, esquecemos o sagrado que é alimentar, o milagre que é transformar ingredientes em histórias, em vínculos, em afeto.
No entanto, ainda há resistência. É na panela de ferro da minha avó que ainda mora o segredo do tempo, no caderno de receitas que buscamos na gaveta que nos aventuramos nos “bolinhos de chuva” e nas churrasqueiras improvisadas onde cada um traz um pedaço de si para dividir. É nesses momentos que a cozinha volta a ser palco de alegria.
Cozinhar é, sim, um ato coletivo. É um convite a ser parte, a criar e compartilhar. Talvez, seja hora de desligarmos os cronômetros da pressa e voltarmos a cozinhar a vida em fogo lento, resgatando o toque que transforma o comer em um gesto de amor. Do nosso amor.
Porque, no fim, o que sacia mesmo não é a comida. É o encontro.
O trabalhador e o ceifador, por Paulo Câncio
Tiago foi chamado para trabalhar na pecuária. “Agradeço a Deus por ter conseguido trabalho. Sinto pelo Beto e pelo Antônio, amigos queridos de infância. Por que uma terra tão grande dá trabalho para tão pouca gente?”
Era com tristeza que Tiago derrubava árvores para liberar a terra para fazer pasto. Naquela manhã, caiu uma forte chuva que durou mais de uma hora. O desmatamento não foi interrompido nem por um minuto sequer. “Chuvas de verão eram fortes, mas rápidas. Faz anos que o tempo mudou, mas não me acostumo”.
Chegou a hora do almoço. “Uma coisa boa desse trabalho é que ganho uns pedaços de carne. Pedaços pequenos que guardo uma parte para o Beto e para o Antônio, como eles fizeram por mim quando estavam trabalhando. A carne é cara, o dinheiro não dá para comprar. Não entendo por que se gastam 15.000 litros de água para obter um quilo de carne. Vai ver que é por isso que é cara.”
Tiago seguiu na sua rotina quando seu irmão, Júlio, homem de muito estudo, que morava na capital, veio passar uns dias com ele, trazendo seu filho, Henrique.
— Fui demitido. Não entendo. Eu sempre vesti a camisa da empresa. Sacrifiquei muitos fins de semana. Meu trabalho era muito elogiado.
Vendo a cara assustada de Henrique, Tiago procurou puxar conversa com o sobrinho. O garoto estava fascinado com o que vinha aprendendo na escola sobre educação ambiental e, igualmente, curioso sobre o tio que há anos não via.
— Mas tio, o senhor trabalha derrubando árvores!
— Sim, também movimento o rebanho de um lado para o outro…
— Isso está errado, derrubar árvores aumenta o efeito estufa…
—Hein?
— Movimentar o rebanho provoca a erosão do solo…
— Cala a boca, menino – disse o pai – mais respeito com seu tio!
— Não estou desrespeitando o tio, eu gosto dele, só estou falando do trabalho dele – diante da cara brava do pai, se calou, cabisbaixo.
Uma semana depois, Tiago ouviu o patrão esbravejar:
— Malditos ambientalistas! Estão contra o progresso. Eu preciso fazer o que faço para enriquecer, alimentando o mundo.
“Devia começar alimentando por essas bandas, tanta gente com fome”.
Um mês depois, Tiago foi demitido. “Parte da terra vai ser abandonada, depois de derrubar tanta árvore? Projeto mal conve…conci… bido? Que é isso?”
À noite, a televisão estava ligada, passava o telejornal, mas ninguém estava prestando atenção. Os irmãos estavam envolvidos com suas preocupações com o dia seguinte. Henrique tinha brincado muito, estava sonolento. Tiago ponderou:
— Quando esse país vai acordar? Derrubam-se árvores para fazer pasto para criar gado para exportação de carne. Ceifa-se a vida das árvores e das pessoas que respiram o ar cada vez mais poluído, contraem doenças e sofrem com seca e chuva fora de época. Não se contentam mais em minar a vida das famílias pela demissão para aumentar a margem de lucro. O capitalismo desenfreado virou uma ameaça global: 95% das causas de desmatamento, 70% das emissões de gases-estufa, além da destruição do solo e extinção de espécies. Apesar disso, a carne é tão cara que o brasileiro não pode comprar, e nem o mérito de gerar emprego a pecuária tem, já que contrata pouca mão-de-obra.
Agroboys e agrogirls, por Daiane Carrasco
A bancada ruralista, popularmente conhecida como “bancada do boi” tem lugar cativo no Congresso Nacional, sendo a maior bancada temática. Atualmente, conta com 324 representantes na Câmara e outros 50 no Senado. Em teoria, defendem os interesses do agronegócio. Será?
Caso realmente defendessem o agro, ruralistas deveriam ter voz ativa na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP) 2025, propondo soluções para produzir mais e melhor, vendendo ao mundo a imagem do agronegócio sustentável, trazendo investimentos e parcerias ao setor, principalmente no mercado de créditos de carbono. Paradoxalmente, a Frente Parlamentar da Agropecuária está na vertente oposta: insurge-se contra qualquer movimento ambientalista, contra a reforma agrária, contra a demarcação de terras indígenas e dificulta ações do Ministérios do Trabalho e dos Direitos Humanos e Cidadania no combate ao trabalho escravo nas fazendas.
Em uma enquete: “Você apoia que um fazendeiro queime o Pantanal para produzir carne?” possivelmente os eleitores da geração ecofriendly, comovidos pelas imagens de onças pantaneiras com suas patas queimadas, responderiam “Não”. Ou então: “Você considera aceitável que um produto na prateleira do mercado tenha sido produzido com mão-de-obra escrava?”, igualmente ouviríamos um sonoro “Não”. Ora… Se a ideologia da bancada do boi difere da opinião dos eleitores, então por que consegue um eleitorado massivo, capaz de transformá-la no maior capital político do país? A resposta inclui múltiplos fatores. A postura em relação às questões inerentes à produção de alimentos não é o que atrai votos. Boa parte do eleitorado das legendas que compõem a bancada BBB (Bíblia, boi e bala) se identifica com o conservadorismo da extrema-direita, as chamadas “pautas tradicionais”, como oposição ferrenha à legalização do aborto, ou ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. É a tríade do bolsonarismo: “pátria, família, religião”.
O crescimento das igrejas neopentecostais, a ausência de identificação com as causas progressistas defendidas pela esquerda, como as minorias LGBTQIA+ e organizações populares (Movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto, para citar duas), e a alienação política do brasileiro criam uma distorção: a ilusão de que o “cidadão de bem” com uma casa financiada por 15 anos é que cederá sua residência a um sem-teto ou que terá o sítio de meio hectare desapropriado para reforma agrária. São concepções equivocadas, porém difíceis de resolver, principalmente porque a educação formal escolar não se ocupa de fornecer tais esclarecimentos.
Um outro fator catalisador da ascensão da bancada BBB é a inserção cultural entre os jovens. Megaeventos como shows e rodeios, que movimentam municípios do interior do Brasil, muitas vezes patrocinados por prefeituras, e o estilo “agro”, com botas, cintos de fivelas grandes e chapéus, aos moldes do estilo country norte-americano, causam frenesi entre milhares de agroboys e agrogirls.
Escritórios especializados selecionam artistas em potencial, através de características que incluem timbres agudos e rasgados, uma boa aparência e carisma, o que catapultou duplas sertanejas Brasil afora. Os álbuns são disponibilizados em meios digitais e os marqueteiros tentam fazer com que os hits grudem nas rádios. Em contrapartida, as rádios recebem para que as músicas dos artistas agenciados por grandes estúdios toquem na programação, uma prática conhecida como “jabá”.
As letras machistas, que objetificam a mulher, que geralmente é submissa e aceita qualquer humilhação, refletem o status quo do macho agro, para o qual a bebedeira, o sexo e a traição são melhores do que a poética:
“Se Deus fez outra de você/ Tá decorando a casa dele/ Ele não vai deixar descer/ É uma minha, a outra é dele.” (Quase: Bruno Caliman/ Rafael Aguiar Santo Galdino; gravada por Cleber e Cauan).
“Procura-se aquela loira delícia, cheia de malícia/ Dos olhos de mel/ Que fudeu minha vida em dois minutinhos de língua/ Fez meu chão da balada virar céu/ Imagina o poder dessa menina numa cama de motel.” (Procura-se: Aya/Jimmy Luzzo/ Matheus Araújo/ William de Brito; gravada por Luan Santana).
Uma cervejinha na balada, um churrasco com modão sertanejo tocando no talo, grilagem, garimpo, milícias rurais – fazem o agro pop. Cabe a nós mudar o disco.
Livros Indicados
Nessa edição trouxemos livros sensacionais, indicados para leitores a partir de 9 anos. E que os adultos também adoram…
Implacáveis, volume 1:
Como nós conquistamos o mundo?
Autor: Yuval Noah Harari
Quem somos nós? E como chegamos aqui? Adulto ou criança, todo mundo já se fez essas perguntas pelo menos uma vez. Nós sabemos que habitamos a Terra há milhares de anos, mas por que foi justamente o humano, e não outro animal, que conquistou o mundo? Com seu já conhecido poder narrativo, o autor best-seller Yuval Noah Harari se volta para o público jovem pela primeira vez para contar essa história, e convida os leitores a conhecer os nossos primeiros antepassados, descobrir por que o dinheiro é o conto de fadas mais bem-sucedido de todos os tempos, como o fogo encolheu nossos estômagos e qual é o nosso superpoder. Apresentando questões complexas em uma linguagem direta e acessível, Como nós conquistamos o mundo , o primeiro de uma série em quatro volumes, é a porta de entrada para todos que desejam saber mais sobre o nosso passado ― e, também, sobre o que podemos esperar do futuro. Saiba mais…
Implacáveis, volume 2:
Por que o mundo não é justo?
Autor: Yuval Noah Harari
A maioria dos livros de história está repleto de informações sobre reis, rainhas, guerreiros e generais. Mas de onde vieram esses poderosos? Por que algumas pessoas vivem em mansões e mandam em todo mundo enquanto outras precisam limpar essas mansões e obedecer às ordens? Isso tem a ver com nosso controle sobre plantas e animais? Ou com a criação da escrita, dos números e, em seguida, do dinheiro? No segundo volume de sua série para jovens leitores, Implacáveis, o aclamado escritor e historiador Yuval Noah Harari explica como a Revolução Agrícola, que aconteceu 10 mil anos atrás, ainda afeta a maneira como os seres humanos vivem hoje em dia. Harari elenca tudo o que aconteceu de errado ― e como ainda assim a humanidade conseguiu dar certo. Implacáveis: Por que o mundo não é justo é uma aventura épica e, mais do que isso, é uma história verdadeira. Narrado com clareza e um toque cuidadoso de humor, este é o livro perfeito para leitores que têm curiosidade em saber como nosso mundo foi construído, e por que algumas pessoas têm tanto enquanto outras têm tão pouco. Saiba mais…
Tiago e o aquecimento global:
um olhar esperançoso sobre o problema
Autora: Marina Xavier da Silva
Uma história tocante e educativa sobre a importância de cuidar do nosso planeta. Tiago, um menino curioso e consciente, questiona seu pai sobre as mudanças climáticas e suas consequências. Através de diálogos perspicazes e sinceros, Tiago desafia a visão despreocupada do pai, trazendo à tona questões urgentes como o impacto da poluição, a desigualdade causada pelas alterações climáticas e a importância das ações coletivas para a preservação do meio ambiente. Este livro não só educa as crianças sobre o aquecimento global, mas também inspira os leitores de todas as idades a refletirem sobre seu papel na proteção do planeta Com uma narrativa envolvente e cheia de lições valiosas, Tiago e o Aquecimento Global é uma leitura essencial para jovens leitores conscientes e suas famílias. Saiba mais…
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Corpo Editorial
Editora
Daiane Carrasco
Oceanóloga. Escritora.
Instagram: @daiane_carrasco
Autora do Livro Ozzy & Jonny.
Designer e Criação
Sérgio Fernandes
Consultor de T.I. & Terapeuta Corporal.
Instagram: @sehfernandes
Site: sehfernades.com.br
Autor do Livro Zé das Campas.
Escritores da Edição nº 16 de 2024 – Fome de que?
Stéfani Quevedo
Professora de Produção de Texto e Literatura Comparada e Influencer Literária
Instagram: @stefani.qm e @prosa.verso.vinho
Cláudia Borges
Técnica Administrativa na FURG
Instagram: @claudia.borges.cacau
Além do Mulherio das Letras, participa do coletivo Escritores de Quinta e Poetas Papareia e dos grupos de pesquisa Poéticas Orais e Pensamento Decolonial e Literatura e Identidade na América Latina
Coautora do Livro Delírios de Quinta
Rita Perez Germano
Professora, Educadora e Escritora
Instagram: @ritapgermano
Paulo Câncio
Escritor & Pianista
Instagram: @paulocanciodesouza
Autor dos Livros Trajetória de Aventureiro
& Momentos da Vida (Direto com Autor)